Começamos o jogo, como sempre, com um goleiro, três zagueiros, dois
cabeças-de-área, dois laterais presos lá atrás, três jogadores no meio-campo
e nenhum centroavante. Faça as contas e conclua comigo, amigo leitor:
jogávamos no tradicional 7-3-0 do Felipão. E sete jogadores de defesa
compondo uma Seleção Brasileira que precisava mais da vitória que uma cuia
de chimarrão precisa de uma bomba e um beiço, não poderiam mesmo ter gerado
outro resultado: 0 x 0, com as duas melhores chances de gol pertencendo aos
chilenos.
O primeiro tempo foi tão ruim, mas tão ruim, que eu voltei a pensar nos
fantasmas de sempre: no time que jogava para não tomar gol; no exército de
defensores toscos; nos adversários medíocres, temidos como se fossem mais
tradicionais que reclame do Rhum Creosotado; na Bolívia, que na altitude de
La Paz seria mais terrível que o Cão do Segundo Livro; e até mesmo na
Venezuela, que mesmo com ficha corrida de mais de trinta temporadas na
lanterninha da América Latina, vinha sendo tratada com mais respeito e
reverência que um embaixador de fraque e penacho. A ausência de futebol
sempre me faz pensar. E no primeiro tempo, confesso que eu pensei demais.
Pensei tanto que, envergonhado, concluí o seguinte: pela primeira vez na
história o torcedor brasileiro estava vendo sua Seleção jogar com medo. Não
digo jogar mal, que isso não chega a ser uma novidade. Foi assim nos
primeiros tempos do esporte das botinadas, na Copa de 1966, em meados dos
anos 70 e também em 1990. Só que é importante recordar que, mesmo a
lazarenta Seleção de 90, só foi eliminada pela campeã defensora Argentina -
e numa partida que dominamos amplamente. Há também quem diga que em 1994
vencemos jogando na retranca. Não é verdade, pois ali o Brasil atacou sempre
e controlou a bola por muito mais tempo que seus adversários. Houve, talvez,
excesso de zelo defensivo e, certamente, falta de talento no meio-campo. Mas
o medo passou longe daquela Seleção de 94, bem como de todas as outras que
envergaram a nossa hoje banalizada jaqueta amarelinha.
E lá fiquei pensando nessas bobagens, até que, como no samba famoso, alguém
que não me lembro anunciou: Denílson, Denílson! O nome gritado pelo locutor
me despertou do estado letárgico em que me encontrava. O que eu não perdia
por esperar, entretanto, é que os torcedores no estádio - e principalmente o
time do Brasil - também haveriam de ser despertados por Denílson.
Denílson foi uma bofetada na cara da mediocridade que insistimos em aceitar
como única alternativa para o nosso futebol. Depois que ele entrou, não
pensei mais em nada. Nem eu, nem a Seleção. Passamos todos a agir numa
deliciosa e produtiva inconseqüência: dribles de Denílson, gritos da
torcida. Toques de calcanhar de Denílson, uivos nas arquibancadas. Canetas,
trivelas, futebol. Cafu se entusiasmou e aplicou chapéus nos adversários.
Edílson mandou a tática do Felipão às favas e passou a jogar de atacante,
caindo pelas pontas, entrando na área, fazendo gol. Rivaldo resolveu
aparecer na área adversária - pois na nossa já era figurinha fácil - e
também fez seu gol. Delírio. Desborde. Quando todos haviam voltado a si, o
jogo já estava resolvido. Tudo foi Denílson e Edílson, o resto foi uma
pálida paisagem.
E não me venham com essa do tal “dedo do técnico”. Que técnico? Naquele
segundo tempo não lembrei sequer do nome dele. O jogo não foi resolvido com
táticas. Foi resolvido por um jogador que não estava escalado, luxuosamente
auxiliado por outro que sequer constava da lista original de convocação.
Denílson e Edílson nos fizeram pensar menos no fantasma da desclassificação
e em táticas retranqueiras - e mais em jogar bola e sermos felizes. E sempre
que o Brasil jogou bola e foi feliz jamais tomamos conhecimento dos
adversários.
Mas restou-me uma derradeira dúvida: por que será que Denílson só realiza
grandes apresentações quando vem do banco de reservas? Por que será que
apenas quando tem seu nome gritado pelas multidões é que ele faz sua entrada
triunfal de Errol Flynn e acaba com o jogo? Não tenho resposta para essa
dependência de súplicas desesperadas, mas sei que ele é uma das poucas
coisas que sobraram da magia do nosso futebol. Eis aqui o meu ponto:
deveríamos colocar Denílson numa redoma de vidro e transportá-lo pelas
capitais do país, pelas escolinhas de futebol, pelos clubes. Temos que
esfregar Denílson na cara de todos os que acreditam que no futebol não há
mais espaço para individualismo e criatividade. Temos que estudar Denílson,
beber Denílson, respirar Denílson.
Porque nos momentos de desespero, tudo o que podemos pedir a Deus é um
jogador de dribles curtos e passes longos. E que nos faça pensar menos.
Quando comecei a coluna havia jurado que não falaria disto, mas este
colunista é antes de tudo um romântico. Então lá vai: já imaginaram Denílson
caindo pela esquerda e Edílson pela direita, tendo ambos em Romário uma
referência na área? Desculpem se estou sendo sonhador: foi tudo culpa dos
dribles de Denílson.