“Quando você gritou mengo/no segundo gol do Zico/tirei sem pensar o cinto/e
bati até cansar. Três anos vivendo juntos/e eu sempre disse contente/minha
preta é uma rainha/porque não teme o batente/se garante na cozinha/e ainda é
Vasco doente. Daquele gol até hoje/o meu rádio está desligado/como se
irradiasse/o silêncio de um amor terminado. Eu aprendi que a alegria/de quem
está apaixonado/é como a falsa euforia/de um gol anulado”. A letra acima é
do grande vascaíno Aldir Blanc, e foi imortalizada através da música do
parceiro João Bosco – um rubro-negro de carteirinha.
Além da métrica perfeita, das rimas preciosas e do pungente lirismo
suburbano que fez a fama da dupla, essa jóia da MPB retrata exatamente o que
os torcedores dos outros times do Rio sentem em relação ao jeito invasivo e
épico do flamenguista comemorar suas conquistas. Digo mais: a comemoração de
um rubro-negro típico é mais esfuziante que fachada de bingo. E a verdade é
que jamais conheci um rubro-negro atípico.
Como tricolor de várias encarnações, tenho que confessar que sofri bastante
nas mãos dos flamenguistas – e o meu sofrimento foi agravado pelos
contrastes. É que até a década de 70 o Fluminense era uma das maiores
potências esportivas do país, enquanto o Flamengo era apenas um clube com
mais torcedores do que glórias – e sem qualquer título importante fora do
cenário estadual. Nos anos 80 e 90, entretanto, o cenário mudou
completamente: o rubro-negro ganhou tudo, enquanto assistia o tricolor
descer ao inferno.
Como torcedor, eu bem que tentava me defender, lançando uma série de
contra-ataques caluniosos, com destaque para culpar o Zico pela perda de
quatro copas. Na contabilidade insana de torcedor, responsabilizávamos o
Zico pelas derrotas de 78, 82, 86 e – requinte de crueldade – pela de 98, na
qual ele teria barrado o Baixinho. Mas conversa de arquibancada tem lá seus
limites, e o fato é que a cada volta do Zico eram quatro ou cinco gols nas
nossas redes. O Galinho foi o maior jogador da era pós-Garrincha no Maracanã
e o Flamengo, salvo alguns suspiros tricolores através de pés e barrigas dos
arcanjos Assis e Renato Gaúcho, ganhou mesmo muito mais do que a gente.
Só que o Flamengo não se contentava apenas em ganhar do Fluminense, e foi
mais longe: quando o Flu lutava para não cair em 96, o Fla deu um jeito de
perder em casa para o Bahia, resultado que mandou o tricolor para a
Segundona pela primeira vez. Por tudo isso, é compreensível que sábado os
tricolores tenham festejado mais a entrada do Flamengo na lista dos
possíveis rebaixados do que a vitória apertada que consolidou o time no
grupo dos oito finalistas do Campeonato Brasileiro.
Como já escrevi aqui, o futebol rubro-negro é filho do Fluminense. A briga
nas Laranjeiras foi a gênese do Flamengo – não como clube, mas como time de
futebol. Com a transferência do time campeão de 1911 para a Gávea, tudo
levava a crer que os tricolores seriam eternos fregueses. Só que desde o
primeiro jogo, o Fluminense demonstrou ter vocação de Saturno da mitologia
greco-romana, divindade que cultivava o estranho hábito de devorar seus
filhos. E assim aconteceu no sábado: o Fluminense derrotou o Flamengo – e
enterrou ainda mais a faca que seus dirigentes incompetentes, seus ídolos
vaidosos e seu time desdenhoso em relação ao campeonato haviam posicionado
sobre o coração do clube.
Portanto, deixemos que Saturno devore seu filho – que chupe os dedos e
palite os dentes com um osso da costela do rebento. Depois de 20 anos de
provações, ele tem esse direito. Pode ser que um dia o Flamengo tenha uma
oportunidade de viver seu momento de Júpiter – o filho de Saturno que causou
sua destruição. Cheguei a pensar que isso fosse acontecer após aqueles três
rebaixamentos consecutivos. Mas não. Saturno mostrou por que é um deus e
conseguiu voltar do inferno, triunfante.
A história de Flamengo e Fluminense é uma história de rancor. Querer que
esse rancor desapareça é como pedir para Otello não ter mais ciúmes de
Desdêmona ou para que nossos Bosco e Blanc, lá do primeiro parágrafo, façam
músicas medíocres. É querer mudar o sentido da história, arrancando-lhe sua
verdadeira essência. Um clássico não se constrói sem ódios e rivalidades –
assim como não haveria o jogo de sábado sem umas boas pitadas de
ressentimento. E é exatamente por isso que eu torço para que jamais o
Flamengo caia. Eu simplesmente não conseguiria viver sem um bom Fla x Flu.