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Marcos Caetano
Domingo, 04 Novembro de 2001, 12h58
terraesportes@terra.com.br

Ressentimento em campo


“Quando você gritou mengo/no segundo gol do Zico/tirei sem pensar o cinto/e bati até cansar. Três anos vivendo juntos/e eu sempre disse contente/minha preta é uma rainha/porque não teme o batente/se garante na cozinha/e ainda é Vasco doente. Daquele gol até hoje/o meu rádio está desligado/como se irradiasse/o silêncio de um amor terminado. Eu aprendi que a alegria/de quem está apaixonado/é como a falsa euforia/de um gol anulado”. A letra acima é do grande vascaíno Aldir Blanc, e foi imortalizada através da música do parceiro João Bosco – um rubro-negro de carteirinha.

Além da métrica perfeita, das rimas preciosas e do pungente lirismo suburbano que fez a fama da dupla, essa jóia da MPB retrata exatamente o que os torcedores dos outros times do Rio sentem em relação ao jeito invasivo e épico do flamenguista comemorar suas conquistas. Digo mais: a comemoração de um rubro-negro típico é mais esfuziante que fachada de bingo. E a verdade é que jamais conheci um rubro-negro atípico.

Como tricolor de várias encarnações, tenho que confessar que sofri bastante nas mãos dos flamenguistas – e o meu sofrimento foi agravado pelos contrastes. É que até a década de 70 o Fluminense era uma das maiores potências esportivas do país, enquanto o Flamengo era apenas um clube com mais torcedores do que glórias – e sem qualquer título importante fora do cenário estadual. Nos anos 80 e 90, entretanto, o cenário mudou completamente: o rubro-negro ganhou tudo, enquanto assistia o tricolor descer ao inferno.

Como torcedor, eu bem que tentava me defender, lançando uma série de contra-ataques caluniosos, com destaque para culpar o Zico pela perda de quatro copas. Na contabilidade insana de torcedor, responsabilizávamos o Zico pelas derrotas de 78, 82, 86 e – requinte de crueldade – pela de 98, na qual ele teria barrado o Baixinho. Mas conversa de arquibancada tem lá seus limites, e o fato é que a cada volta do Zico eram quatro ou cinco gols nas nossas redes. O Galinho foi o maior jogador da era pós-Garrincha no Maracanã e o Flamengo, salvo alguns suspiros tricolores através de pés e barrigas dos arcanjos Assis e Renato Gaúcho, ganhou mesmo muito mais do que a gente.

Só que o Flamengo não se contentava apenas em ganhar do Fluminense, e foi mais longe: quando o Flu lutava para não cair em 96, o Fla deu um jeito de perder em casa para o Bahia, resultado que mandou o tricolor para a Segundona pela primeira vez. Por tudo isso, é compreensível que sábado os tricolores tenham festejado mais a entrada do Flamengo na lista dos possíveis rebaixados do que a vitória apertada que consolidou o time no grupo dos oito finalistas do Campeonato Brasileiro.

Como já escrevi aqui, o futebol rubro-negro é filho do Fluminense. A briga nas Laranjeiras foi a gênese do Flamengo – não como clube, mas como time de futebol. Com a transferência do time campeão de 1911 para a Gávea, tudo levava a crer que os tricolores seriam eternos fregueses. Só que desde o primeiro jogo, o Fluminense demonstrou ter vocação de Saturno da mitologia greco-romana, divindade que cultivava o estranho hábito de devorar seus filhos. E assim aconteceu no sábado: o Fluminense derrotou o Flamengo – e enterrou ainda mais a faca que seus dirigentes incompetentes, seus ídolos vaidosos e seu time desdenhoso em relação ao campeonato haviam posicionado sobre o coração do clube.

Portanto, deixemos que Saturno devore seu filho – que chupe os dedos e palite os dentes com um osso da costela do rebento. Depois de 20 anos de provações, ele tem esse direito. Pode ser que um dia o Flamengo tenha uma oportunidade de viver seu momento de Júpiter – o filho de Saturno que causou sua destruição. Cheguei a pensar que isso fosse acontecer após aqueles três rebaixamentos consecutivos. Mas não. Saturno mostrou por que é um deus e conseguiu voltar do inferno, triunfante.

A história de Flamengo e Fluminense é uma história de rancor. Querer que esse rancor desapareça é como pedir para Otello não ter mais ciúmes de Desdêmona ou para que nossos Bosco e Blanc, lá do primeiro parágrafo, façam músicas medíocres. É querer mudar o sentido da história, arrancando-lhe sua verdadeira essência. Um clássico não se constrói sem ódios e rivalidades – assim como não haveria o jogo de sábado sem umas boas pitadas de ressentimento. E é exatamente por isso que eu torço para que jamais o Flamengo caia. Eu simplesmente não conseguiria viver sem um bom Fla x Flu.

 

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