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Marcos Caetano
Domingo, 18 Novembro de 2001, 13h23
terraesportes@terra.com.br

O dono do Vasco


O Clube de Regatas Vasco da Gama já teve muitos donos. Refiro-me aos milhões de torcedores apaixonados que construíram a saga que transformou um clube de bairro, de uma colônia de imigrantes portugueses, numa das maiores potências esportivas do mundo. O Vasco se notabilizou pela defesa intransigente da democracia e dos valores liberais: foi o primeiro clube a admitir negros entre seus jogadores, o primeiro clube de subúrbio a conquistar o respeito dos grandes da Zona Sul carioca e um dos primeiros a adotar o profissionalismo no país.

Não se iluda, amigo leitor: no início, nem o Flamengo era popular. Nem mesmo o Flamengo admitia negros entre seus sócios e atletas. Flamengo, Botafogo e Fluminense eram clubes esnobes e elitistas. Só o Vasco era democrático. E digo mais: o sonho da Democracia Corintiana – que infelizmente durou poucos verões – começou muitas décadas antes, com o Vasco da Gama.

Entretanto, por uma dessas coisas cármicas, fatídicas e inexplicáveis, aconteceu com o Vasco uma grande tragédia. Por alguma razão insondável, o clube passou da democracia para um sistema de governo – hay gobierno? – baseado na figura messiânica e intocável do dono. Não há outro nome para descrever a postura do monarca senão esse: dono. Poderia dizer rei, califa, sultão ou aiatolá, mas não seria correto, posto que mesmo eles devem prestar contas a alguém: ao povo, aos seus sacerdotes ou mesmo a Deus, Alá ou outra divindade equivalente. Já o dono não. O dono faz o que quer. E o dono do Vasco faz tudo, absolutamente tudo o que quer. Raciocine comigo:

O Vasco brigou com o banco investidor. O tal banco que fazia jorrar a dinheirama que permitiu ao clube chegar a ter, sei lá, metade da equipe olímpica nacional e montar um time que foi campeão brasileiro e vice mundial. O contrato era de, dizem, 99 anos. Não durou dois.

O Vasco brigou com o Clube dos 13, entidade que pode ter todos os defeitos do mundo, mas que inegavelmente luta pelos interesses dos grandes clubes do Brasil. Luta até demais, na minha opinião. O São Caetano, excluído da Liga Rio-São Paulo, que o diga.

O Vasco brigou com as empresas fornecedoras de material esportivo. Não joga com uniforme delas. Preferiu fazer sua própria fatiota e abrir mão da receita que gigantes como Nike e Adidas proporcionam a clubes e seleções. Nem Barcelona e Manchester United – os dois clubes mais ricos do mundo –, nem os times da NBA e NFL nos Estados Unidos, abriram mão desse apoio.

O Vasco brigou com a Rede Globo, que não importa o que se diga, é a principal fonte de receita e visibilidade de marca dos clubes brasileiros. Artista que saiu da televisão para tentar a sorte em outro canto sabe como é duro deixar de ser reconhecido nas ruas. Clube que não aparece na telinha perde visibilidade, fama, torcida e principalmente dinheiro.

O Vasco brigou com os patrocinadores. Pergunto ao leitor: você associaria sua marca a um clube que usou seu maior patrimônio – a camisa – para veicular de graça uma publicidade do SBT, apenas por um capricho do dono, brigado com a Globo? A falta de seriedade pode até não afastar torcedores – mas afasta anunciantes que é uma beleza.

O Vasco brigou com Romário, através de uma violenta torcida organizada que funciona como uma espécie de guarda palaciana do tal dono do clube – e que tem a falta de inteligência e o desrespeito de vaiar aquele que será o segundo homem a chegar à marca dos mil gols na história do futebol mundial. E foi justamente num episódio de hostilidade contra o ídolo que irrompeu a briga nas arquibancadas, causadora da tragédia da final do Campeonato Brasileiro de 2001. Curiosidade: implicaram com o dedo médio exibido pelo Baixinho, mas adoram o Edmundo, que jogando pelo Flamengo, chacoalhou a genitália para eles. Pessoal estranho...

O Vasco brigou com o Governo e o Congresso, pois é um dos clubes investigados pela CPI do futebol, uma história que teve lances espetaculares, como a invasão policial para a apreensão dos livros fiscais do clube.

O Vasco brigou com os jogadores. Mandou os excelentes Luizão, Pedrinho e Juninho Pernambucano embora, não paga o elenco atual e afasta do time aqueles que fazem o que eu e você faríamos se ficássemos meses sem receber: reclamar.

O Vasco brigou com a imprensa, ao reeditar a escapista e imbecil Lei da Mordaça, através da qual proíbe seus jogadores de dar entrevistas e bloqueia o acesso de jornalistas às dependências do clube.

Por todas as razões acima, o Vasco brigou com a torcida – fonte maior de sustentação financeira, moral e espiritual de um clube. E eis aqui o meu ponto: o Vasco brigou com todo mundo. Digo isso e já me corrijo: o dono do Vasco brigou com todo mundo. E, despreocupado, parece dizer: “Eu, rico, o Vasco falido”.

O Vasco começou pequeno, no subúrbio. Enfrentou o elitismo e abriu com talento e coragem seu espaço entre os grandes. Enfrentou o preconceito e permitiu que os negros jogassem em seus times. Enfrentou o atraso e ajudou a implantar o profissionalismo. Enfrentou a origem humilde e se tornou um dos mais gloriosos clubes do mundo. Agora chegou a hora do Vasco enfrentar o seu dono. Disso depende sua sobrevivência. Conseguirá? O destino dessa questão está, como sempre esteve, nas mãos de sua valente e grandiosa torcida.

 

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