O Clube de Regatas Vasco da Gama já teve muitos donos. Refiro-me aos milhões de torcedores apaixonados que construíram a saga que transformou um clube de bairro, de uma colônia de imigrantes portugueses, numa das maiores potências esportivas do mundo. O Vasco se notabilizou pela defesa intransigente da democracia e dos valores liberais: foi o primeiro clube a admitir negros entre seus jogadores, o primeiro clube de subúrbio a conquistar o respeito dos grandes da Zona Sul carioca e um dos primeiros a adotar o profissionalismo no país.
Não se iluda, amigo leitor: no início, nem o Flamengo era popular. Nem mesmo o Flamengo admitia negros entre seus sócios e atletas. Flamengo, Botafogo e Fluminense eram clubes esnobes e elitistas. Só o Vasco era democrático. E digo mais: o sonho da Democracia Corintiana – que infelizmente durou poucos verões – começou muitas décadas antes, com o Vasco da Gama.
Entretanto, por uma dessas coisas cármicas, fatídicas e inexplicáveis, aconteceu com o Vasco uma grande tragédia. Por alguma razão insondável, o clube passou da democracia para um sistema de governo – hay gobierno? – baseado na figura messiânica e intocável do dono. Não há outro nome para descrever a postura do monarca senão esse: dono. Poderia dizer rei, califa, sultão ou aiatolá, mas não seria correto, posto que mesmo eles devem prestar contas a alguém: ao povo, aos seus sacerdotes ou mesmo a Deus, Alá ou outra divindade equivalente. Já o dono não. O dono faz o que quer. E o dono do
Vasco faz tudo, absolutamente tudo o que quer. Raciocine comigo:
O Vasco brigou com o banco investidor. O tal banco que fazia jorrar a
dinheirama que permitiu ao clube chegar a ter, sei lá, metade da equipe
olímpica nacional e montar um time que foi campeão brasileiro e vice
mundial. O contrato era de, dizem, 99 anos. Não durou dois.
O Vasco brigou com o Clube dos 13, entidade que pode ter todos os defeitos
do mundo, mas que inegavelmente luta pelos interesses dos grandes clubes do
Brasil. Luta até demais, na minha opinião. O São Caetano, excluído da Liga
Rio-São Paulo, que o diga.
O Vasco brigou com as empresas fornecedoras de material esportivo. Não joga
com uniforme delas. Preferiu fazer sua própria fatiota e abrir mão da
receita que gigantes como Nike e Adidas proporcionam a clubes e seleções.
Nem Barcelona e Manchester United – os dois clubes mais ricos do mundo –,
nem os times da NBA e NFL nos Estados Unidos, abriram mão desse apoio.
O Vasco brigou com a Rede Globo, que não importa o que se diga, é a
principal fonte de receita e visibilidade de marca dos clubes brasileiros.
Artista que saiu da televisão para tentar a sorte em outro canto sabe como é
duro deixar de ser reconhecido nas ruas. Clube que não aparece na telinha
perde visibilidade, fama, torcida e principalmente dinheiro.
O Vasco brigou com os patrocinadores. Pergunto ao leitor: você associaria
sua marca a um clube que usou seu maior patrimônio – a camisa – para
veicular de graça uma publicidade do SBT, apenas por um capricho do dono,
brigado com a Globo? A falta de seriedade pode até não afastar torcedores –
mas afasta anunciantes que é uma beleza.
O Vasco brigou com Romário, através de uma violenta torcida organizada que
funciona como uma espécie de guarda palaciana do tal dono do clube – e que
tem a falta de inteligência e o desrespeito de vaiar aquele que será o
segundo homem a chegar à marca dos mil gols na história do futebol mundial.
E foi justamente num episódio de hostilidade contra o ídolo que irrompeu a
briga nas arquibancadas, causadora da tragédia da final do Campeonato
Brasileiro de 2001. Curiosidade: implicaram com o dedo médio exibido pelo
Baixinho, mas adoram o Edmundo, que jogando pelo Flamengo, chacoalhou a
genitália para eles. Pessoal estranho...
O Vasco brigou com o Governo e o Congresso, pois é um dos clubes
investigados pela CPI do futebol, uma história que teve lances
espetaculares, como a invasão policial para a apreensão dos livros fiscais
do clube.
O Vasco brigou com os jogadores. Mandou os excelentes Luizão, Pedrinho e
Juninho Pernambucano embora, não paga o elenco atual e afasta do time
aqueles que fazem o que eu e você faríamos se ficássemos meses sem receber:
reclamar.
O Vasco brigou com a imprensa, ao reeditar a escapista e imbecil Lei da
Mordaça, através da qual proíbe seus jogadores de dar entrevistas e bloqueia
o acesso de jornalistas às dependências do clube.
Por todas as razões acima, o Vasco brigou com a torcida – fonte maior de
sustentação financeira, moral e espiritual de um clube. E eis aqui o meu
ponto: o Vasco brigou com todo mundo. Digo isso e já me corrijo: o dono do
Vasco brigou com todo mundo. E, despreocupado, parece dizer: “Eu, rico, o
Vasco falido”.
O Vasco começou pequeno, no subúrbio. Enfrentou o elitismo e abriu com
talento e coragem seu espaço entre os grandes. Enfrentou o preconceito e
permitiu que os negros jogassem em seus times. Enfrentou o atraso e ajudou a
implantar o profissionalismo. Enfrentou a origem humilde e se tornou um dos
mais gloriosos clubes do mundo. Agora chegou a hora do Vasco enfrentar o seu
dono. Disso depende sua sobrevivência. Conseguirá? O destino dessa questão
está, como sempre esteve, nas mãos de sua valente e grandiosa torcida.