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Marcos Caetano
Domingo, 30 Dezembro de 2001, 12h40
terraesportes@terra.com.br

A contramão do tempo


Para onde vão as coisas que poderiam ter sido mas não foram? Haverá uma dimensão paralela, uma cidade perdida, um reino do faz-de-conta ou um lugar assim, onde o que quase aconteceu possa finalmente existir em paz, longe da frieza dos historiadores e das estatísticas?

Talvez por conta do ofício de escritor ou quem sabe pelo fato de ser um renhido otimista, acredito que exista uma esquina do universo, uma contramão do tempo, onde Deus guarda – talvez apenas para deleite particular – os fatos que estiveram a um passo de existir no mundo concreto, e que por um capricho qualquer não vingaram. Lá devem repousar as glórias que teriam chegado às páginas dos jornais e dos livros de história, registradas para sempre com cores de verdade – e não com as tintas da nossa imaginação –, não fosse por uma palavra, uma singela condicional, que esconde sua força descomunal por trás de duas letrinhas: se.

Os mais antigos diziam que se ‘se’ jogasse, ‘se’ era artilheiro. É uma frase divertida – até porque começa justamente com a inexorável condicional – mas discordo dela. Discordo e digo mais: ‘se’ joga sim, e joga uma barbaridade. Ao menos nas minhas crônicas sempre haverá lugar para um ‘se’ artilheiro, um ‘se’ campeão. Nos meus textos o herói da semana sempre poderá ser um ‘se’. Um ‘se’ ou um de seus irmãos fraternos: o ‘talvez’, o ‘quem sabe’, o ‘por que não?’, ou outros menos votados.

Mas, retomando minha questão inicial, me pergunto neste último dia do ano – um ano com enorme vocação para autor de tragédia grega ou roteirista de filme noir: para onde vão os momentos mágicos do esporte que tantas vezes foram pressentidos, sem jamais terem sido realmente vividos? Por exemplo: onde estará a medalha olímpica de ouro do nosso João do Pulo – seu maior consolo nos anos difíceis após o trágico acidente – que quase foi roubada por aqueles juízes soviéticos? Falando em medalha de ouro, em que prateleira estará a nossa, a do futebol, única conquista que faltava à Seleção Brasileira?

Onde terá ido parar a força superior que deteve, no último segundo, as botinadas imbecis que encurtariam as carreiras de gênios como Garrincha, Reinaldo e Zico. Qual terá sido o destino da rajada de vento que desviou a bola que atingiria o olho de Tostão, permitindo que ele desfilasse sua classe e visão de jogo por mais duas copas? Onde viverá o anjo que impediu que Castilho, inexplicavelmente esquecido pelo Fluminense, tivesse dado da janela de seu apartamento o último salto de sua vida? E onde andarão os fiscais de pista que impediram o acidente de Ayrton Senna – que hoje já quebrou o recorde de cinco títulos mundias do Fangio.

Onde encontraremos o piloto que conseguiu evitar a queda do avião com o glorioso time do Torino, base da Squadra Azurra – a primeira tetracampeã mundial de futebol? Em que lugar poderemos ver o brilhante Atlético Mineiro, campeão brasileiro de 1977, e o São Paulo tricampeão do mundo? Talvez ao lado da Máquina do Flu, de Carlos Alberto, Paulo César, Doval e Rivellino – que não perdeu nos pênaltis aquela semifinal com o Corinthians e fez com o Internacional de Falcão, Caçapava e Figueroa a maior decisão da história dos brasileirões. Que fim levaram os títulos de times inesquecíveis como a Ponte Preta e o Cruzeiro dos anos 70, o São Caetano da virada do milênio, o Bangu dos anos 80, o América dos anos 60, a Hungria de 54, a Holanda de 74 e a França de 86? As inesquecíveis atuações de Pelé na copa de 74 e Romário nas duas últimas olimpíadas, onde andarão? E, principalmente, onde estarão guardados os campeonatos da Seleção Brasileira de 50 e 82 e a taça que escapou de ser derretida?

Eu poderia escrever mil laudas com histórias assim, mas encerremos por aqui esse inventário sentimental das glórias que não chegaram. Pensando bem, esses momentos só foram mágicos porque foram apenas ‘quase’. O Brasil não seria o mesmo sem a derrota na Copa de 50 – que o garoto Pelé, diante das lágrimas do pai, jurou vingar e vingou, poucos anos mais tarde. O que eu queria dizer ao amigo leitor é que, se existir esse mundo onde os sonhos não desaparecem, é exatamente lá que eu desejo que passemos o ano de 2002. E se isso não for possível, que o ano que chega hoje à noite possa ao menos vir carregado de grandes emoções esportivas. Tão grandes quanto todas essas, que foram sem jamais ter sido.

 

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