Há alguns anos, quando esteve ciscando pelo Brasil para fugir do rigoroso
inverno portenho, o grande escritor argentino Adolfo Bioy Casares se
aventurou por alguns dos nossos programas televisivos de entrevistas. Num
deles, perguntado sobre o porquê de tanta rivalidade entre Brasil e
Argentina, respondeu que isso é muito natural – que nós, seres humanos,
somos assim mesmo. Preferimos odiar sempre quem está próximo. Não brigamos
com a sogra do nosso amigo, mas com a nossa. Da mesma forma, nas empresas,
os engravatados brigam bastante com os concorrentes, mas brigam ainda mais
entre eles mesmos. É o ancestral conceito do inimigo íntimo.
Concordo com Casares. Realmente, fora um ou outro modelo de vestido da
Björk, jamais nutri grandes antipatias pelos islandeses. Também não chego a
ter particular implicância com os times de futebol de Burkina Faso ou do
Uzbequistão. Mas botem uma bola de futebol para rolar na grama e uns
cabeludos com camisa celeste e branca do outro lado e, creiam-me, vocês
conhecerão o lado mais sinistro da alma deste colunista. É verdade: sem as
brigas com os vizinhos, nosso futebol não teria a mesma graça. Digo isso e
já me apresso em corrigir a primeira oração deste parágrafo: concordo com
Casares – apesar dele ser argentino.
Mas deixemos os portenhos de lado e vamos falar de Brasil. Pergunte aos
músicos de chorinho, discípulos do maestro Canhoto, qual o valor de um bom
Regional. Tente convencer um baiano a abolir o berimbau, o azeite de dendê
ou o vatapá. Pense em proibir o puchero no Rio Grande do Sul, o bolinho de
bacalhau no Rio ou o virado em São Paulo. Seria o caminho mais rápido para a
guerra civil. Na música popular, como na culinária e no esporte, tudo o que
tem sabor regional desperta mais paixões. E aqui chego finalmente ao meu
ponto: sou totalmente contra o fim dos campeonatos estaduais.
Sei que minha postura renderá algumas polêmicas, que há muitos cronistas
esportivos de boa cepa pregando a extinção dos campeonatos estaduais, que há
a questão absolutamente urgente do calendário, que existem aspectos
financeiros envolvidos – mas se me pronunciasse a favor da extinção dos
estaduais estaria traindo minhas mais doces lembranças e, portanto, minha
própria consciência.
É claro que não defendo que os estaduais continuem como estão: inchados,
desorganizados, longos. Jamais pregaria a favor de monstrengos paridos nos
últimos anos, como o Paulistão do Farah, pródigo em chaves e fases, e o
Cariocão do Caixa D´Água, com uma quantidade boçal de equipes. Esses
campeonatos são inviáveis, seja financeiramente, seja sob a ótica da
capacidade de atrair torcedores.
Revisemos as fórmulas, mas não deixemos de realizar os apaixonantes e quase
centenários campeonatos estaduais. O do Rio de Janeiro poderia contar com os
quatro grandes mais dois classificados, apontados em prévia disputada por
equipes como Bangu, América e Americano. Já o Paulistão deveria ter no
máximo 10 equipes. As tradicionais, mais as que se classificassem numa fase
preliminar. A presença das equipes tradicionais garantiria o interesse do
torcedor – sem o que não se faz dinheiro – enquanto as vagas dos convidados
assegurariam o mérito do torneio. Esses campeonatos seriam disputados em, no
máximo, 30 dias.
Meu argumento pelos estaduais é muito simples: perguntem a um torcedor do
Botafogo se ele vibrou mais com o título brasileiro de 95 que com o estadual
de 89. Ou ao santista se ele poderia viver sem aquele Paulistão de 84.
Perguntem também aos corintianos o que eles acham do bicampeonato da
Democracia Corintiana e aos tricolores se eles trocariam os gols de Assis e
Renato Gaúcho sobre o Flamengo pelo gol do Romerito no Campeonato
Brasileiro. Não, amigo leitor, eu e você não vivemos sem as singelas
vitórias provincianas, sem o prazer sublime de chegar na repartição
segunda-feira e gozar o camarada que senta na mesa ao lado.
Não sou contra a Liga Rio-São Paulo, pois acho que há espaço para os dois
torneios. Mas imagino que não será a mesma coisa para um vascaíno ganhar o
título em cima do Etti Jundiaí ou um para são-paulino ver seu time dar a
volta olímpica no estádio Godofredo Cruz, em Campos. Simplifico ainda mais:
desafio o amigo leitor a listar, sem pestanejar, os campeões dos últimos
cinco torneios Rio-São Paulo. Se tivesse perguntado pelos últimos cinco
campeões estaduais teria sido bem mais fácil, não?
Desde que o mundo é mundo o palmeirense quer gozar o corintiano, o tricolor
o rubro-negro e assim por diante. “É a ordem natural das coisas”, diria
Casares. Que seja para sempre assim, concordo eu. Apesar dele ser argentino.