Os leitores com mais de 30 anos certamente relacionam o nome Popó
muito mais a um personagem de Chico Anysio do
que propriamente a
um campeão de boxe. Além do Popó, um
divertido velhinho ranzinza, o Chico criou também um outro personagem,
um mentiroso patológico, que vivia contando
para a esposa Terta histórias passadas “numa ocasião em 1927”.
Chamava-se Pantaleão.
Pois até a madrugada de domingo muita gente
acreditava que o Popó
boxeador era exatamente como o Pantaleão de
Chico City: um grande
mentiroso. Não foram poucos os que disseram
que seu cartel era
forjado, que seus adversários anteriores eram
frangotes, que ele tinha
queixo mole, um monte de histórias. Até e-
mail da sensitiva Dóris de
Atlântida eu recebi, garantindo que não
haveria hipótese do nosso
Acelino de Freitas passar pelo temível
campeão olímpico e mundial Joel
Casamayor.
Essa gente parecia não levar em conta que
Popó, se é verdade que
não enfrentou adversários tão fortes quanto
os do cubano, ao menos
passou por eles de forma mais contundente,
pulverizando-os em
poucos assaltos com nocautes espetaculares.
Caiu duas vezes sim –
mas se recuperou dentro dos próprios combates
– e ao contrário dos
críticos de plantão, eu sempre encarei isso
como um atestado de
resistência, não como vaticínio de um queixo
de porcelana.
Agora toda essa turma vai ter que se
desculpar pelas previsões
infundadas. Popó é o mais novo campeão
mundial da AMB, a mais
antiga organização pugilística do mundo. É um
título de verdade,
obtido de maneira incontestável e em decisão
unânime – com direito a
um knockdown no terceiro assalto. Todos os
jurados apontaram a
vitória de Popó por diferença de dois pontos
– e como me ensinou o
mestre Nilton Campos, “a queda vale dois
pontos”.
Popó unificou os títulos das duas entidades e
agora parte em busca
de mais glórias. Pode tanto pensar nos
cinturões do CMB e da FIB
quanto considerar uma mudança de categoria. A
sorte de Popó é que
ele é um pugilista com uma compleição física
que lhe permitirá subir de
categoria muitas vezes ainda. É fortíssimo e
sua tendência a ganhar
massa muscular, que o fez passar fome às
vésperas de alguns
combates, nesse caso joga a seu favor.
O baiano é um grande campeão – e merece ser
celebrado com todas
as fanfarras e serpentinas que tivermos a
disposição. Ele acaba de se
juntar ao grupo dos brasileiros que podem ser
considerados os
melhores do mundo em suas modalidades. O
seletíssimo grupo conta
apenas com Guga, Roberto Scheidt, Loyola,
Manoel Tobias, Rodrigo
Pessoa, Adriana Behar e Shelda e, se depender
de esforço e torcida,
brevemente também com Daniele Hypólito.
Pode ser que alguns estranhem o espaço desta
coluna estar sendo
consumido com boxe, um esporte que a parcela
racional dos meus
neurônios tenta afastar de mim, por
considerá-lo brutal. Entretanto,
peço desculpas aos leitores mais sensíveis
para admitir que a parcela
não racional dos meus neurônios possui uma
indiscutível vantagem
numérica, de forma que eu realmente gosto da
coisa. Para agradar os
mais eruditos poderia até apelar para a
memória de Hemingway, que
gostava não só de boxe, mas também de
touradas – cujas justas, ao
contrário da “nobre arte dos punhos”, não
contam com a aprovação
das duas partes.
Aprecio boxe principalmente devido ao
messianismo do meu irmão, que
me fez ver como uma luta pode ser épica,
imprevisível e, mais do que
tudo, um pungente exercício de solidão. Esses
são assuntos que
jamais escapam à sensibilidade do escritor.
Ninguém é mais solitário
que um pugilista sobre o ringue – pois, como
dizem, quando soa o
gongo, até o banquinho tiram de lá.
Mas quem procura entender o drama do boxe
deveria ler “A Luta”, do
magistral Norman Mailer, e assistir o
documentário ganhador do Oscar
“Quando Éramos Reis”. Ambos tratam de um
mesmo combate:
Muhammad Ali versus George Foreman, em 1973,
no Zaire. Os que se
debruçarem sobre essas duas obras-primas vão
entender por que
intelectuais do quilate de Hemingway e Mailer
se interessaram pelo
assunto. O capítulo “O Homem na Cordoalha”,
em que Mailer descreve
como Ali passou vários assaltos recostado
sobre as cordas,
absorvendo poderosos golpes e cansando o
virtualmente invencível
Foreman para em seguida, quando parecia mais
derrotado, reverter
tudo e nocauteá-lo, é das coisas mais belas
que já li.
Popó não é um Muhammad Ali, mas desde ontem
vai poder contar para
quem quiser ouvir, sem correr o risco de ser
tomado por mentiroso,
uma história que começa mais ou menos assim:
“Numa ocasião em
2002...”