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Marcos Caetano
Terça-feira, 15 Janeiro de 2002, 14h28
terraesportes@terra.com.br

Punhos e neurônios


Os leitores com mais de 30 anos certamente relacionam o nome Popó muito mais a um personagem de Chico Anysio do que propriamente a um campeão de boxe. Além do Popó, um divertido velhinho ranzinza, o Chico criou também um outro personagem, um mentiroso patológico, que vivia contando para a esposa Terta histórias passadas “numa ocasião em 1927”. Chamava-se Pantaleão.

Pois até a madrugada de domingo muita gente acreditava que o Popó boxeador era exatamente como o Pantaleão de Chico City: um grande mentiroso. Não foram poucos os que disseram que seu cartel era forjado, que seus adversários anteriores eram frangotes, que ele tinha queixo mole, um monte de histórias. Até e- mail da sensitiva Dóris de Atlântida eu recebi, garantindo que não haveria hipótese do nosso Acelino de Freitas passar pelo temível campeão olímpico e mundial Joel Casamayor.

Essa gente parecia não levar em conta que Popó, se é verdade que não enfrentou adversários tão fortes quanto os do cubano, ao menos passou por eles de forma mais contundente, pulverizando-os em poucos assaltos com nocautes espetaculares. Caiu duas vezes sim – mas se recuperou dentro dos próprios combates – e ao contrário dos críticos de plantão, eu sempre encarei isso como um atestado de resistência, não como vaticínio de um queixo de porcelana.

Agora toda essa turma vai ter que se desculpar pelas previsões infundadas. Popó é o mais novo campeão mundial da AMB, a mais antiga organização pugilística do mundo. É um título de verdade, obtido de maneira incontestável e em decisão unânime – com direito a um knockdown no terceiro assalto. Todos os jurados apontaram a vitória de Popó por diferença de dois pontos – e como me ensinou o mestre Nilton Campos, “a queda vale dois pontos”.

Popó unificou os títulos das duas entidades e agora parte em busca de mais glórias. Pode tanto pensar nos cinturões do CMB e da FIB quanto considerar uma mudança de categoria. A sorte de Popó é que ele é um pugilista com uma compleição física que lhe permitirá subir de categoria muitas vezes ainda. É fortíssimo e sua tendência a ganhar massa muscular, que o fez passar fome às vésperas de alguns combates, nesse caso joga a seu favor. O baiano é um grande campeão – e merece ser celebrado com todas as fanfarras e serpentinas que tivermos a disposição. Ele acaba de se juntar ao grupo dos brasileiros que podem ser considerados os melhores do mundo em suas modalidades. O seletíssimo grupo conta apenas com Guga, Roberto Scheidt, Loyola, Manoel Tobias, Rodrigo Pessoa, Adriana Behar e Shelda e, se depender de esforço e torcida, brevemente também com Daniele Hypólito.

Pode ser que alguns estranhem o espaço desta coluna estar sendo consumido com boxe, um esporte que a parcela racional dos meus neurônios tenta afastar de mim, por considerá-lo brutal. Entretanto, peço desculpas aos leitores mais sensíveis para admitir que a parcela não racional dos meus neurônios possui uma indiscutível vantagem numérica, de forma que eu realmente gosto da coisa. Para agradar os mais eruditos poderia até apelar para a memória de Hemingway, que gostava não só de boxe, mas também de touradas – cujas justas, ao contrário da “nobre arte dos punhos”, não contam com a aprovação das duas partes.

Aprecio boxe principalmente devido ao messianismo do meu irmão, que me fez ver como uma luta pode ser épica, imprevisível e, mais do que tudo, um pungente exercício de solidão. Esses são assuntos que jamais escapam à sensibilidade do escritor. Ninguém é mais solitário que um pugilista sobre o ringue – pois, como dizem, quando soa o gongo, até o banquinho tiram de lá.

Mas quem procura entender o drama do boxe deveria ler “A Luta”, do magistral Norman Mailer, e assistir o documentário ganhador do Oscar “Quando Éramos Reis”. Ambos tratam de um mesmo combate: Muhammad Ali versus George Foreman, em 1973, no Zaire. Os que se debruçarem sobre essas duas obras-primas vão entender por que intelectuais do quilate de Hemingway e Mailer se interessaram pelo assunto. O capítulo “O Homem na Cordoalha”, em que Mailer descreve como Ali passou vários assaltos recostado sobre as cordas, absorvendo poderosos golpes e cansando o virtualmente invencível Foreman para em seguida, quando parecia mais derrotado, reverter tudo e nocauteá-lo, é das coisas mais belas que já li.

Popó não é um Muhammad Ali, mas desde ontem vai poder contar para quem quiser ouvir, sem correr o risco de ser tomado por mentiroso, uma história que começa mais ou menos assim: “Numa ocasião em 2002...”

 

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