“Quero morrer com meus calçados de sapateado postos”. A frase de Sammy Davis
Jr. resume de forma pungente a quimera de todo artista com um mínimo de
alma: dizer adeus nos palcos. Negro, pobre, cego de um olho e um tanto
desajeitado, ele venceu todos os preconceitos ao fazer-se crooner, ator e
humorista – tendo se consagrando, ao lado dos amigos Frank Sinatra e Dean
Martin, como um dos maiores entertainers da história do show business
americano. Mas, acima de tudo, Sammy Davis Jr. sabia que era um sapateador.
E, como desejava, acabou sepultado com seus sapatos chapeados nos pés.
Um pouco antes de morrer, no entanto, Sammy decidiu apresentar-se pela
última vez ao lado daquele que havia escolhido como seu sucessor: o jovem
Gregory Hines. O número que o mestre – magro e já devastado pelo câncer –
realizou ao lado do pupilo consistia em uma seqüência de passos que um fazia
e o outro repetia em seguida. Lá pelas tantas, Sammy emendou umas passadas
tão complexas que Hines tentou, tentou, mas simplesmente não conseguiu
imitar. Emocionado, ele se ajoelhou, beijou os sapatos do mestre e disse
apenas: “obrigado”. Anos mais tarde, Hines comentou aquele momento numa
entrevista: “O que vimos ali não foi um velhinho doente, tentando fazer umas
visagens para agradar o público. Era um verdadeiro estilista do sapateado,
no auge de sua arte”.
Um artista dos gramados
Como Sammy foi um artista da ribalta, Romário é um artista dos gramados.
Podem me chamar de obtuso e simplista, mas o fato é que não consigo
considerar Marlon Brando um mau ator ou Van Gogh um pintor medíocre pelo
fato de ambos terem vivido de forma desregrada. Igualmente, me recuso a
julgar um jogador pelo que ele faz fora de campo. E é por pensar assim que
considerei ultrajante o episódio que expôs o melhor jogador brasileiro dos
últimos tempos, compelido a mendigar um lugar numa seleção de nível mediano
– e escalada por um treinador que está longe de figurar entre os mais
significativos da história.
O que teria Felipão para contrapor aos quase 900 gols de Romário – segundo
maior artilheiro da história – e os inúmeros títulos que conquistou em
campo, entre eles uma Copa do Mundo? Algumas copas nacionais? Uma
Libertadores? É muito pouco. Scolari poderia até pensar em banir o craque
por motivos disciplinares – se ele mesmo não ostentasse vários episódios de
indisciplina na carreira. Será que bater num colega de profissão, ofender
jornalistas e juízes, jogar bolas dentro de campo para paralisar uma partida
e instruir seus jogadores a agredir o hoje queridinho Edílson não são
episódios que, levados ao pé da letra da cartilha felipista, o excluiriam de
sua própria Seleção?
Eis aqui o meu ponto: julgo os profissionais do futebol pelo que fazem
dentro de campo. E dentro de campo Felipão coleciona mais episódios de
indisciplina que Romário, que jamais agrediu ou mandou agredir alguém. Esta
é a verdade – e só não vê quem não quer. Até porque, quem disse que Edílson,
Djalminha e Lúcio – aquele, que deu uma cabeçada na cara do companheiro
Roger em plena Olimpíada – são querubins?
Balela maior que essa, só mesmo dizer que Romário não é convocado por
motivos técnicos e táticos. Até concordaria, se em seu lugar estivesse um
Van Basten, um Jairzinho, um Ronaldinho Fenômeno no auge da forma. Mas
Edílson e Luizão? Ora, Luizão joga ainda mais parado do que Romário. O
Baixinho não fez mais gols que qualquer outro atacante convocado apenas na
última rodada. Fez mais gols nas últimas semanas, nos últimos meses, no
último ano e na última década.
Gratidão e respeito
O respeito dispensado aos seus grandes desportistas retrata, como poucas
coisas, o verdadeiro caráter de um povo. Já fomos suficientemente canalhas
ao barrar gênios como Zizinho e Falcão, preterindo-os por jogadores
medíocres. Nos Estados Unidos, se Magic Johnson, do alto de seus quarenta e
tantos anos e portador do vírus HIV, pedisse uma vaga no time de basquete da
próxima Olimpíada, jogaria na posição que escolhesse. Por uma simples
questão de gratidão e respeito.
Muita gente crê que Romário não deveria ter se rebaixado tanto, com
declarações dolorosas como “falhei como atleta, homem, pai, filho, amigo e
marido”. Mas, como disse acima, ele é um artista. E artistas sempre querem
se despedir no palco. Romário vê a Copa da Coréia como o cenário ideal para
brilhar pela última vez para as platéias internacionais. Seria sua
derradeira grande performance. O canto do cisne de nosso maior craque em
atividade.
Deus permita que possamos ver isso. Que Romário possa se despedir com as
chuteiras postas. Porque nossos netos merecem que essa história lhes seja
contada.