Os 100 anos da Resposta Histórica que transformou o Vasco em uma causa
Apesar de não ter sido o primeiro a contar com jogadores negros, clube cruzmaltino se tornou um símbolo de luta contra o racismo no futebol
O Vasco conquistou diversos títulos ao longo de seus 125 anos de história. Mas nenhuma conquista no campo tem o mesmo peso de uma carta que, de tão simbólica, está exposta na sala de troféus em São Januário.
Em 7 de abril de 1924, o então presidente José Augusto Prestes assinou o manifesto que ficou conhecido como a “Resposta Histórica”, comunicando que o clube se recusaria a disputar a divisão principal do Rio de Janeiro sem seus jogadores negros, exigência que havia sido imposta pelos dirigentes da época.
De tão emblemática, a atitude considerada insurgente naqueles tempos em que o futebol de elite era privilégio dos brancos transformou a equipe cruzmaltina em estandarte da luta contra o racismo no esporte brasileiro e ajuda a entender por que o documento tem valor inestimável para os vascaínos.
Consolidado no remo, o clube só começou a se destacar no futebol no início da década de 1920. Sem a mesma tradição dos times da zona Sul do Rio na modalidade, o caminho encontrado foi montar elencos com jogadores das classes sociais menos favorecidas. A equipe campeã da segunda divisão em 1922 tinha como craques operários, choferes, pintores e faxineiros.
Assim, assegurou o direito de disputar, no ano seguinte, a primeira divisão ao lado dos já consagrados América, Botafogo, Flamengo e Fluminense. Com a base de trabalhadores braçais mantida no plantel, o Vasco desbancou favoritos, emplacou 11 vitórias em 14 jogos e faturou o título do campeonato organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT).
Incomodados pela ascensão meteórica dos vascaínos, rivais decidiram criar uma nova liga, a elitista Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), impondo ao clube apelidado de Camisas Negras, pela cor de seu uniforme, a exigência de excluir 12 jogadores que, de acordo com os cartolas, não apresentavam “condições sociais apropriadas para o convívio esportivo”. O analfabetismo foi uma das razões enumeradas pela liga para desqualificar parte do elenco campeão.
Por unanimidade, a diretoria cruzmaltina desistiu de integrar a AMEA e, então, endereçou a carta à liga argumentando por que rechaçava a ordem para abrir mão de jogadores negros e pobres: “O ato público que pode maculá-los nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles, com tanta galhardia, cobriram de glórias”, detalha o quinto parágrafo da Resposta Histórica.
Enquanto os grandes clubes institucionalizavam o elitismo do futebol com a criação de um torneio paralelo, o Vasco via sua popularidade aumentar, sobretudo entre as camadas suburbanas da sociedade carioca, lotava estádios a cada jogo e, em 1924, voltou a sagrar-se campeão, dessa vez de forma invicta, do campeonato regido pela LMDT.
Diante do sucesso de público, renda e repercussão dos Camisas Negras, a AMEA resolveu admitir o Vasco em 1925. Até então, a liga alimentava a expectativa de ver o Cruzmaltino “constituir equipes genuinamente portuguesas” – em referência à colônia fundadora do clube –, “para uma demonstração esportiva das verdadeiras qualidades dessa raça secular”, conforme ofício assinado pelo presidente da AMEA em réplica à Resposta Histórica.
Embora não tenha sido o primeiro a contar com jogadores negros no Brasil, o Vasco ganhou fama de pioneirismo pela maneira enfática como afrontou a discriminação da AMEA. Antes, em 1905, o Bangu, time fabril do subúrbio carioca, já havia integrado o jovem Francisco Carregal, de 16 anos, à sua equipe. No fim daquela década, o clube se afastaria da LMDT por causa da restrição explícita a “pessoas de cor” entre os participantes da liga.
A diferença para o Vasco, porém, é que o time alvirrubro só foi chamar a atenção pelos bons resultados em 1933, quando conquistou o Campeonato Carioca. Além de ter sido o primeiro campeão com jogadores negros na equipe, o Vasco também foi o primeiro clube esportivo brasileiro a ter um presidente negro, Cândido José de Araújo, que ficou no cargo entre 1904 e 1906.
No entanto, depois de Araújo, as esferas de poder vascaínas se estabilizaram como um feudo da branquitude. Atualmente, entre os 18 membros da diretoria administrativa da associação, incluindo o ex-jogador e presidente Pedrinho, não há nenhuma pessoa negra. No futebol, vendido para a 777 Partners após a transformação do clube em SAF, todos os diretores são brancos.
A baixa representatividade racial no quadro associativo é reforçada por barreiras como a cobrança de altas taxas de admissão a novos sócios e exigência de tempo mínimo de seis anos para candidatos a presidente nas eleições, cujos últimos pleitos não tiveram chapas encabeçadas por candidatos negros.
Há 100 anos, a Resposta Histórica contribuiu para ampliar o alcance de um esporte elitizado a negros e pobres e virou um marco para a era do profissionalismo no futebol. Até hoje, a torcida vascaína reverencia o manifesto com os versos de um cântico aclamado nas arquibancadas: “Eu já lutei por negros e operários... Camisas Negras que guardo na memória”.
Mas o enfrentamento ao racismo ainda é uma página em aberto na história do clube que deve boa parte de suas glórias ao heroísmo dos ídolos negros. Demanda engajamento permanente e incentivo à ascensão de pretos ao poder, como manda os princípios da carta centenária que transformou o Vasco, antes um mero time de futebol, em uma causa política.