Quem matou os Garotos do Ninho?
Justiça e Flamengo devem resposta às famílias das vítimas do incêndio que completa cinco anos de impunidade
Assim que se espalhou a notícia do incêndio no Ninho do Urubu, em 8 de fevereiro de 2019, muitos torcedores do Flamengo e, inclusive, jornalistas se apressaram em cravar que havia ocorrido uma “fatalidade”. Não faltaram eufemismos para tentar afastar a responsabilidade do clube pelas 10 vidas de crianças perdidas em seu centro de treinamento, como se fosse um acaso da natureza.
Porém, a tese de “fogo acidental” perdeu força no mesmo dia da tragédia, quando órgãos públicos informaram que dirigentes rubro-negros haviam ignorado várias notificações sobre a irregularidade das instalações onde os garotos da base estavam abrigados e até mesmo uma ordem para desativar o alojamento.
O registro de uma troca de e-mails anexada ao processo pela Justiça atesta não apenas a responsabilidade do Flamengo no caso, mas, sobretudo, a de dirigentes e gestores que se omitiram diante de tantas negligências no CT. O clube sabia com antecedência, por exemplo, de problemas na parte elétrica da estrutura de contêineres que pegou fogo.
Para a força-tarefa formada por Defensoria e Ministério Público que acompanhou os desdobramentos da tragédia, as provas de negligência foram suficientes para pedir o indiciamento dos supostos responsáveis por homicídio doloso (quando se assume os riscos de matar). Já para a Justiça, a omissão de dirigentes do Flamengo, que preferiu pagar multas por irregularidades e manter o CT da base funcionando sem alvará do Corpo de Bombeiros por quase uma década, foi determinante para o incêndio.
Em decisão com base no inquérito policial, a 36ª Vara Criminal do Rio de Janeiro determinou o indiciamento de oito pessoas por homicídio culposo qualificado, incluindo dois engenheiros responsáveis pelos contêineres, o dono da empresa que cuidava da manutenção do ar condicionado que pegou fogo e o ex-presidente do Flamengo, Eduardo Bandeira de Mello, que acabou eleito deputado federal depois da tragédia. A primeira audiência do julgamento só aconteceu em agosto do ano passado, mas ainda não há data prevista para o restante dos trâmites até a sentença.
De acordo com advogados e procuradores que atuam no caso, a força política do Flamengo tem contribuído para atrasar diligências e o processo na Justiça, blindando ex-dirigentes das consequências do incêndio. “É uma luta de Davi contra Golias”, compara a mãe de uma das vítimas ao definir o cabo de guerra com o clube.
Rompidos politicamente, o ex-presidente Bandeira de Mello e o atual, Rodolfo Landim, protagonizaram um jogo de empurra para se eximir da responsabilidade pelo incêndio. Ambos, no entanto, coincidem em dizer que não sabiam das infrações, tampouco dos problemas estruturais no alojamento. Landim havia assumido a presidência no mês anterior à tragédia. Ele argumenta que não houve tempo para se inteirar da situação no reduto das categorias de base.
Em sua primeira semana como mandatário, o clube anunciou a contratação do uruguaio De Arrascaeta, por 63 milhões de reais, até então a maior transferência da história do futebol brasileiro. Nos dias seguintes à catástrofe no Ninho, a diretoria comandada por Landim recusou acordo conjunto de reparação às famílias que totalizaria 57 milhões de reais. Cartolas preferiram negociar individualmente com parentes das vítimas.
Até hoje, o Flamengo gastou cerca de 25 milhões de reais com indenizações aos familiares de vítimas e sobreviventes – apenas uma família não aceitou os valores oferecidos pelos dirigentes e entrou na Justiça contra o clube –, enquanto desembolsou 800 milhões de reais em contratações desde o incêndio. A lentidão para determinar os responsáveis pelas mortes é semelhante à de outras tragédias de maior proporção no Brasil.
Desastres como o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, ou o incêndio na Boate Kiss, que matou 270 pessoas, tiveram indiciamentos em bem menos tempo que o trágico episódio do Ninho – embora o julgamento dos réus da boate tenha sido anulado em setembro. Por sua vez, o Flamengo ignorou pedidos de conselheiros para a abertura de uma sindicância interna que pudesse esclarecer as devidas responsabilidades e eventuais falhas de funcionários.
“Eu queria que o Landim ou qualquer outro dirigente do Flamengo olhasse no meu olho e dissesse que não teve culpa pela morte do meu filho”, diz Wedson Matos, pai do zagueiro Pablo Henrique, de 14 anos. “Mas nem isso eles tiveram a dignidade de fazer. Colocaram meu filho numa jaula, e ele foi consumido pelo fogo como se fosse uma mercadoria. É complicado, pra gente que é pobre, ter esperança na Justiça deste país.”
A revolta de Wedson encontra eco na maioria dos desabafos de familiares dos garotos, que acordaram indenizações com o clube, mas seguem angustiados pela letargia em punir a negligência. Eles se sentem violentados cada vez que dirigentes saem a público para relativizar uma tragédia que poderia ter sido evitada, caso a vida de jovens promessas do futebol fosse tão valorizada quanto uma contratação milionária.
Quem matou os garotos do Ninho?
Passados cinco anos do incêndio, Justiça e Flamengo devem uma resposta às famílias. Para que suas perdas jamais sejam esquecidas. Para que a história não se repita como nova tragédia. Para que a impunidade não seja celebrada em mais uma farsa.