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Como o fluxo migratório ajuda a explicar sucesso de França e Inglaterra na Copa do Mundo

Ambas as seleções contam com atletas com raízes em outros países, especialmente na África, e passaram por renovações que as colocam como favoritas ao título

3 dez 2022 - 15h10
(atualizado às 18h04)
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Não restam dúvidas de que França e Inglaterra são algumas das favoritas ao título da Copa do Mundo do Catar.

As duas seleções passaram por uma grande renovação em seus respectivos elencos ao longo da última década, com uma presença maior de atletas com ascendência estrangeira, especialmente de países com histórico de migração para a Europa.

A revelação destes jogadores mudou o patamar dessas equipes, culminando com o bicampeonato mundial francês, em 2018, e afastando o rótulo de coadjuvante dos ingleses.

4º jogo das oitavas: A França passou em primeiro no grupo D.
4º jogo das oitavas: A França passou em primeiro no grupo D.
Foto: Rolex dela Pena/EFE/EPA / Lance!

Entre os 26 convocados pelo técnico Didier Deschamps para a Copa do Catar, a seleção francesa conta com 14 jogadores com famílias oriundas de países africanos. São eles: Mbappé (Camarões e Argélia); Benzema (Argélia); Dembelé (Senegal, Mauritânia e Mali); Camavinga (Angola e Congo); Koundé (Benin); Upamecano (Guiné-Bissau); Tchouameni e Saliba (Camarões); Konaté e Fofana (Mali); Guendouzi Marrocos); Mandanda, Diassi e Muani (República Democrática do Congo).

"A relação da França com esses países é de ex-metrópole com ex-colônia. São países que nas últimas décadas enviaram muitos imigrantes para a França pela proximidade linguística e política. Alguns deles não foram colônias, como Guiné-Bissau, mas têm uma relação muito profunda com a França pelo papel que ela desempenhou no continente africano pela via da exploração", explica Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM Porto Alegre.

Kylian Mbappé, uma das principais estrelas do futebol mundial na atualidade, é um destes atletas com familiares originários da África. O atacante do PSG nasceu em Paris, mas é filho de mãe argelina e pai camaronês. A federação camaronesa chegou a conversar com o jogador para convencê-lo de defender os "Leões Indomáveis", mas o craque estreou pelos profissionais da França logo aos 18 anos e três meses, dando fim à possibilidade.

Vencedor da Bola de Ouro, Karim Benzema também possui ascendência argelina, mas com uma relação ainda mais forte com o país africano do que Mbappé. O atacante do Real Madrid, que está lesionado, mas ainda não foi cortado da seleção francesa, tem mãe e pai nascidos na Argélia.

O jogador já foi alvo de críticas por não cantar a "Marselhesa", hino francês, durante as partidas da seleção. Em entrevista à Vanity Fair, em 2015, ele afirmou que o silêncio se deve ao fato de a música "incitar a guerra".

A canção foi criada em 1792 e ficou popular durante a Revolução Francesa. A letra faz referência ao combate contra estrangeiros na fronteira.

A Argélia é um dos países colonizados pela França na África, tendo a sua ocupação concretizada no início do século 19 após um processo marcado pela resistência local e a violência dos franceses. Dois levantes pela independência aconteceram no século 20.

Jogadores da Inglaterra comemoram gol marcado sobre o País de Gales (Foto:EFE/EPA/Georgi Licovski)
Jogadores da Inglaterra comemoram gol marcado sobre o País de Gales (Foto:EFE/EPA/Georgi Licovski)
Foto: Lance!

Um em 1945, após a Segunda Guerra, e outro em 1954. A soberania do país foi reconhecida somente em 1962, mas disputas políticas e má situação financeira ocasionaram na migração de diversas pessoas à Europa, especialmente à França. É o caso dos pais de Benzema e até mesmo de Zidane, campeão mundial em 1998 e lenda do futebol francês.

"A França tem uma política de tentar forçar o imigrante e fazer que ele adote a cultura francesa", diz Uebel. "Historicamente a França é um país que tem episódios de racismo e xenofobia, que são reproduzidos no próprio debate político. Vimos isso sempre nas candidaturas de extrema-direita, na qual a temática migratória está sempre muito presente."

A independência dos países africanos ganhou força na década de 1960 e se deve muito à mobilização dos próprios povos africanos de buscar a libertação frente à colonização imposta pelos europeus, além de várias razões de política interna que intensificaram os processos de descolonização.

Muitos destes movimentos reivindicavam o Pan-Africanismo, ideologia que acredita na união dos povos de todos os países do continente africano. Tais processos de independência influenciaram os fluxos migratórios.

"Com as independências dos países africanos, há um pequeno incentivo ao processo de imigração que tem muito a ver com a reconstrução francesa no pós-guerra. Muitos africanos vão lutar pela França e com isso vão conseguir, em alguns casos, um processo de imigração mas pós-Segunda Guerra. Após a guerra, o país está quebrado, falido, sem infraestrutura, então uma solução razoável é a entrada desses imigrantes e teremos esse fluxo que vai ocorrer de 1940 a 1960. De 1970 a 1980, ele começa a diminuir em relação às grandes crises econômicas que o mundo vai enfrentar", explica Lucas Leite, professor Dr. de Relações Internacionais e coordenador do Observatório do Continente Africano da FAAP.

Não é de hoje que a seleção francesa é conhecida pela sua multiculturalidade. A geração campeã em 1998 ficou conhecida como "black, blanc e beur" (negra, branca e árabe, em tradução livre). Entretanto, o racismo ainda é presente e nem mesmo astros como Mbappé estão imunes.

O jogador foi alvo de insultos racistas depois de perder um pênalti na eliminação da França para a Dinamarca, nas oitavas de final da Eurocopa, no ano passado. Em novembro, ele revelou que pensou em desistir de jogar pela seleção após o episódio.

O caminho inverso também é comum e vem mudando: 37% dos jogadores da Copa nascidos na França atuam pelos Les Bleus, enquanto 56% atuam por cinco seleções africanas, segundo levantamento do site Quartz. Destaques de Senegal, o zagueiro Koulibaly e o goleiro Mendy nasceram em território francês, assim como Sofiane Boufal, de Marrocos, Bryan Mbeumo, de Camarões, Alexander Djiku, de Gana, dentre outros.

A Eurocopa 2020 já teve 56 atletas de 13 países participantes que poderiam representar 22 nações da África, segundo levantamento do Estadão.

O número de convocados de Senegal, Camarões e Nigéria para a Copa do Mundo de 2002 nascidos fora desses países era de 5,7%. Isso mudou significativamente para a Copa Africana de Nações realizada neste ano, quando esse grupo representou 29,7% do total de atletas inscritos.

Inglaterra

Assim como na Copa de 2018, onze convocados da Inglaterra têm raízes em outros países. Cinco jogadores têm pais ou avós irlandeses. Jack Grealish e Declan Rice chegaram a atuar pelas equipes de base da Irlanda e o volante até participou de três amistosos com o time principal antes de optar por representar a Inglaterra.

"A Inglaterra também teve uma relação de colonialismo com Jamaica, São Cristóvão e Neves, Nigéria, algo muito semelhante com o que fez a França, mas claro que cada um dos países imprimia uma característica diferente nessas relações", diz Uebel. "A própria Irlanda, até a sua separação, também foi território inglês", recorda.

O Caribe também tem uma importância única para a cultura e história da Inglaterra. Um dos principais fluxos migratórios para o Reino Unido partiu da América Central. Depois da Segunda Guerra Mundial, o governo britânico incentivou a chegada de imigrantes de colônias e ex-colônias do seu império.

Uma lei aprovada pelo parlamento em 1948 criou o novo status de "cidadão do Reino Unido e colônias" para pessoas nascidas ou naturalizadas no Reino Unido ou em uma de suas colônias. O objetivo era encorpar a força de trabalho no país, bastante prejudicada pelas baixas da guerra.

Um dos principais fluxos de migração entre 1948 e 1971 se deu do Caribe para o Reino Unido. No total, foram quinhentas mil pessoas fazendo a travessia de um continente a outro. Eles ficaram conhecidos como a "Geração Windrush", nome do primeiro barco que deixou a Jamaica rumo à Inglaterra, com mais de 500 pessoas que buscavam uma nova vida.

Os imigrantes receberam autorização para permanecer no Reino Unido e levaram consigo os valores culturais de seus respectivos países, o que transformaria a sociedade inglesa a partir daí. A população do Reino Unido nascida na Jamaica expandiu de 6 mil para 100 mil pessoas entre 1951 e 1961, de acordo com estudo do Instituto de Estatísticas Nacionais.

Já a partir da década de 1970, milhares de imigrantes deixaram a África à procura de melhores condições de vida. O Reino Unido receberia um grande número de pessoas de países ex-colônias do Império Britânico como África do Sul, Nigéria, Gana, Zimbábue, Quênia, Tanzânia, entre outros.

O atacante Marcus Rashford, autor de três gols ingleses na Copa do Catar, tem parentes da pequena ilha caribenha de São Cristóvão e Neves. Já o atacante Raheem Sterling nasceu na Jamaica, país que Kalvin Phillips, Kyle Walker e Callum Wilson também compartilham ascendência.

Assim como Mbappé, jogadores da seleção inglesa foram alvos de ataques racistas à época da Eurocopa. Os alvos dos insultos foram Rashford, Saka e Sancho — somente o último não está no Catar.

Os três atacantes desperdiçaram suas cobranças na disputa de pênaltis que deu o título para a Itália. Além de Rashford, Saka é outro destaque da boa campanha da Inglaterra no Mundial até o momento.

A França encara a Polônia neste domingo, às 12h, por uma vaga nas quartas de final da Copa do Mundo. Mais tarde, às 16h, é a vez da Inglaterra medir forças com os Estados Unidos para ver quem avança no Mundial do Catar.

Estadão
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