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Com futebol raiz, Campeonato do Golzinho faz favela de Salvador virar caldeirão

Torneio teve primeira edição em 2002, é disputado com três jogadores na linha, conta com arbitragem de fora e duração é de sete meses

4 abr 2022 - 10h10
(atualizado em 6/4/2022 às 14h04)
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No lugar de uma arena tradicional, o que é organizado é um espaço público onde um largo ligeiramente inclinado se transforma em quadra de futebol. O chamado gol de praia, meta diminuta que dispensa presença de um goleiro, é outra atração à parte. Por fim, a lateral que delimita o campo de jogo fica por conta da calçada, normalmente ocupada por torcedores que acompanham as partidas literalmente em cima do lance. É nesse ambiente raiz que o "Futebol 3 de linha", assim foi batizado, mostra a sua cara no torneio que também é conhecido como Campeonato do Golzinho.

Aos domingos, o largo da Galícia deixa de ser uma via de acesso comum e se transforma no centro das atenções dos moradores e esportistas que transitam pelo bairro do IAPI, região carente e pobre de Salvador. E tudo por causa do amor ao futebol. No Estado, o Bahia caiu para a Série B do Campeonato Brasileiro.

Largo da Galícia durante a semifinal.
Largo da Galícia durante a semifinal.
Foto: Instagram/@jeffersonn13 / Estadão

O espaço ganha forma de praça esportiva quando Jefferson Freitas Santana, de 31 anos, começa a marcar o campo com cal por volta das 6 horas. Outros voluntários também entram em ação. Todos se ajudam. Uns varrem a rua, outros ajudam a tirar os carros do local do jogo e tem ainda os que se ocupam em colocar as redes nos golzinhos e a encher as bolas. Em meio a todo esse trabalho, eles contam com um precioso auxílio. Dona Queá, moradora ilustre do bairro, já deixa à mão uma garrafa de café além de uma cesta com pão, manteiga, queijo e frutas.

"Ela é uma das incentivadoras do campeonato e tem um motivo especial para torcer. O filho Edmílson Piuí, que defende o time Cayo Adonai, é um dos destaques do campeonato. E ela não perde um jogo sequer", afirmou Jefferson, organizador do torneio, ao Estadão.

A edição atual do torneio conta com 12 equipes e alguns times levam os nomes de ruas da região, um jeito de homenagear a turma. O torneio conta ainda com outras agremiações que atravessam a capital baiana para participar das partidas. No campeonato, cada time utiliza três jogadores de linha que podem ser substituídos sem limite de trocas e as equipes têm direito a inscrever até 20 integrantes em seus elencos.

"Cobramos R$ 150 de inscrição dos times além de R$ 35 de taxa de arbitragem. São três partidas por domingo: a primeira é às 10h, depois às 11h e a última, ao meio-dia", conta Jefferson.

VIDRAÇAS QUEBRADAS

Além de despesas como troféus, premiação, compra de material esportivo e primeiros socorros, parte do dinheiro arrecadado fica reservado ao conserto de telhas e vidraças das casas próximas ao campo. "Sempre tem alguns prejuízos provocados por um chute mal dado, mas a gente paga tudo e também põe as coisas no lugar. Ninguém fica na pior. Isso é certo", garante Jefferson que trabalha como motorista de uma empresa de material cirúrgico.

Apesar de ser um torneio de várzea, o Futebol 3 de Linha prima pela organização. Uma comissão de arbitragem é presidida por José Francisco, um dos fundadores do torneio. Ele lidera um grupo de abnegados e define quem vai apitar. Pela missão de comandar os duelos na favela, os juízes faturam R$ 50 por jogo. Não tem briga nem VAR. Para coibir as entradas violentas, além do amarelo (advertência) e vermelho (expulsão), o árbitro tem ainda o recurso do cartão azul (exclusão por dois minutos). "Aí vai dá interpretação do juiz. O azul é para o atleta perceber que precisa esfriar a cabeça."

Na falta de um departamento médico, o atendimento é feito por Silvane Freitas, de 54 anos, e mãe de Jefferson. "Ela é enfermeira. Quando não está de plantão, ajuda no que for preciso. Como jogamos no asfalto, os jogadores costumam se ralar quando caem no chão. Minha mãe se encarrega dos curativos", disse o filho orgulhoso.

Família Beamado em jogo contra o Maloka pelo Campeonato do Golzinho.
Família Beamado em jogo contra o Maloka pelo Campeonato do Golzinho.
Foto: Instagram/@jeffersonn13 / Estadão

A rivalidade é uma marca dos jogos realizados no largo da Galícia. É comum ver técnicos batendo boca com a arbitragem. O fanatismo pelos times do torneio é visível pela tradicional "invasão do campo" após um gol marcado. "Isso é ação natural", afirma Jefferson. Para invadir o campo, basta sair da calçada e ganhar a rua. Mas tudo é contornado na conversa. Quando acontece, o juiz para o relógio.

A agitação da rodada dominical movimenta ainda a economia da praça esportiva improvisada. Moradores reforçam o orçamento vendendo cerveja, refrigerante, lanches e também espetinhos para o público presente. Mesmo após o fim da rodada, torcedores e jogadores seguem no espaço até o meio da tarde. Alguns ligam o som dos carros e o movimento continua. O assunto? As jogadas, os gols e as vitórias. "Quem tem seu comércio de ocasião aproveita para continuar vendendo os produtos", disse Jefferson.

TORNEIO DE LONGA DURAÇÃO

Como os jogos são realizados somente aos domingos, e cada rodada conta apenas com três partidas, o campeonato costuma ser longo. O deste ano tem previsão de sete meses. O regulamento é simples. São 12 agremiações que jogam entre si em sistema de pontos corridos e oito garantem vaga para as quartas. Os quatro melhores colocados têm a vantagem do empate até a semifinal. Na decisão, os dois finalistas jogam em condição de igualdade". As regras são mais claras do que em muitos torneios organizados pelas federações estaduais.

O Brongo City, time mais antigo entre os que estão disputando essa edição do torneio, é o líder da competição. Atual campeão, o Bem Amado é outra equipe com bastante tradição no bairro. Entre os jogadores que se destacam estão nomes curiosos como Torrado, Mião, Peixe, Kilo, Rodallega e Negueba. Não há nomes compostos como no futebol brasileiro.

Jogadores do Brongo City se reúnem antes do jogo para preleção.
Jogadores do Brongo City se reúnem antes do jogo para preleção.
Foto: Instagram/@jeffersonn13 / Estadão

Existe ainda uma política de boa vizinhança quando equipes de fora se interessam em conhecer o "campo de asfalto" para disputar o campeonato pela primeira vez. "Primeiro chamamos para amistosos. Quem não está acostumado se perde com a movimentação no futebol 3 de linha. É preciso ter uma estratégia. A maioria dos times, por exemplo, prefere jogar o primeiro tempo atacando para a descida. Tem isso. Cansa menos e tem mais chance de abrir boa vantagem no placar", afirmou Jefferson.

VIOLÊNCIA INTERROMPEU CAMPEONATO DESTE ANO

Localizado em uma região carente, os moradores locais também sofrem com o tráfico de drogas. Este ano, uma guerra entre facções mudou a rotina do bairro. O risco em relação à integridade física de jogadores e torcedores preocupou Jefferson, que achou melhor paralisar a disputa. "Ficamos parados todo o mês de janeiro e retornamos somente no fim de fevereiro. O largo da Galícia é um local de passagem e poderia ser perigoso. Em geral, nosso pedaço é tranquilo, mas preferimos segurar dois meses. Agora, como tudo está em paz, voltamos com força total."

A retomada do torneio devolveu a normalidade dos domingos para os frequentadores dos jogos. "Em partidas decisivas, já tivemos umas trezentas pessoas assistindo. Você conta com o pessoal que fica na calçada além dos torcedores que preferem assistir atrás do gol. Somando a galera presente nas lajes das casas mais altas e também as pessoas que observam tudo das janelas dá um público muito bom", disse Jefferson.

Estadão
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