Estados Unidos x Inglaterra: Quando o Soccer venceu o 'Football' em uma Copa do Mundo
Equipes se reencontram nesta sexta-feira e guardam na lembrança dia no qual os americanos já ganharam dos inventores do futebol no Independência
Nesta sexta-feira, EUA e Inglaterra fazem um clássico colonial pelo grupo B da Copa do Mundo. Não é o primeiro enfrentamento entre os dois times em Mundiais, porém, os estadunidenses buscam repetir a sua única vitória sobre os inventores do futebol. Relembre a partir de agora, o dia que o Soccer venceu o Football em terras tupiniquins.
O CONTEXTO
O Mundial de 1950 foi o primeiro depois da Segunda Guerra Mundial. Mesmo com o fim do conflito em 1945, a competição que poderia ter sido realizada no ano seguinte, só voltou a ser disputada quatro anos depois, pelo fato da poeira do conflito estar alta em diversos países.
Como em quase todas as vezes, os ingleses chegavam ao Mundial com alta confiança em seu nível. Antes mesmo de cruzarem o Atlântico para a disputa da Copa, a Inglaterra tinha vencido 23 dos 30 jogos antecedentes. Nesta sequência, a equipe aplicou algumas goleadas como 4 a 0 contra a Itália em Turim e 10 a 0 sobre Portugal em 1947. O English Team tinha na defesa seu ponto forte e era um time bastante eficiente ofensivamente.
No outro lado, os EUA tinham ficado em terceiro lugar na Copa de 1930 e para a edição de 1950, eles se classificaram após disputar um triangular contra Cuba e México, que foi acordado entre os três países. O torneio classificatório foi disputado inteiramente em solo mexicano.
Na fase inicial, os americanos perderam de 6 a 0 para o México e empataram em 1 a 1 com Cuba. Na fase final, perderam para os donos da casa por 6 a 2, mas venceram os cubanos por 5 a 2 e garantiram a vaga. Muito se pensou que os Yankees não iam querer viajar para o Brasil por conta das goleadas sofridas contra equipes de outros continentes: entre elas estão duas goleadas para a Itália - uma por 7 a 1 na Copa de 1934 e um 9 a 0 nas Olimpíadas de 1946. Eles também chegaram a perder de 11 a 0 para a Noruega, além de terem sido massacrados três vezes contra a Escócia em amistosos.
O time estadunidense era praticamente amador: o goleiro Borghi era motorista de carro funerário e havia sido médico na Segunda Guerra Mundial e Walter Bahr era professor. Também, três jogadores daquele time não eram nascidos nos Estados Unidos. Além do mais, a preparação antes da viagem para o Brasil foi muito curta.
Na Copa do Mundo, os ingleses começaram no grupo 2 vencendo o Chile no Maracanã pelo placar de 2 a 0. Já os EUA tinham perdido novamente para a Espanha por 3 a 1, aumentando a sequência de derrotas em jogos internacionais.
O ENFRENTAMENTO
Dia 29 de junho de 1950. O palco era o estádio Independência em Belo Horizonte. Muitos já tinham como certo um passeio inglês. A confiança dos Three Lions era tanta que nem Mathews - craque do time na época - foi escalado após ter retornado do Canadá.
O jogo começou com a Inglaterra massacrando os ingleses nos primeiros minutos de jogo, tendo seis chances claras em 12 minutos com direito a bola na trave e defesa de Borghi. Os estadunidenses cresceram a partir dos 25' do primeiro tempo e finalizaram, mas o goleiro Williams trabalhou tranquilamente. Os britânicos ainda responderam com mais três chegadas.
Aos 38 minutos, veio o momento catártico do jogo. Em uma cobrança de lateral, o capitão e escocês Mclleny arremessou para Bahr dar um chutão para a área. O arqueiro Williams tentou interceptar, mas o centroavante haitiano Gaetjens se antecipou e tocou de cabeça para tirar do arqueiro. O autor deste gol histórico era um estudante de contabilidade no Brooklyn.
O público enlouqueceu e teve até invasão de campo. Muitos espectadores entraram de graça (como penetras) ao sair do antigo Morro da Pitimba. Como o muro era baixo e fácil de subir, os torcedores que moravam na área viu o jogo de lá mesmo. O primeiro tempo terminou com incríveis 30 finalizações inglesas
Na etapa final, com a vantagem, William Jeffrey, técnico dos Estados Unidos, colocou todo o time atrás da linha de meio de campo para conter as ações inglesas. E foi justamente o que aconteceu. O desempenho defensivo dos americanos era perfeito. Os ingleses foram totalmente cercados e apesar de conseguirem concluir jogadas, o goleiro Borghi fazia uma atuação espetacular e sólida (talvez, a maior de sua vida).
A oito minutos do fim do jogo, Colombo derrubou Mortensen na área, mas o juiz apenas deu uma falta fora. Na cobrança, Ramsey encontrou Mullen que cabeceou, mas o arqueiro fez uma grande intervenção. Os ingleses reclamaram pedindo gol, porém a bola não tinha cruzado a linha. Aos 40', os americanos tiveram uma chance de matar o jogo e após finalização, o zagueiro Alf Ramsey salvou os ingleses. No fim, o milagre aconteceu e os EUA conseguiram uma vitória histórica sobre a Inglaterra.
BRASIL MARAVILHADO COM OS YANKEES
O impacto com a zebra no Independência se estendeu à imprensa do Brasil. A edição de 30 de junho de 1950 do "Jornal dos Sports" colocou em sua capa o título "Sensação na queda dos ingleses!". Há uma foto da equipe dos Estados Unidos posada e legenda abaixo:
- Heróis da maior façanha: aí estão os componentes da equipe norte-americana, que na sensacional peleja ontem realizada, em Belo Horizonte, superaram com brilho a equipe inglesa por 1 a 0. Nos extremos, Lyons, assistentes de técnico, e Jeffrey, o técnico - disse o periódico em seu relato do jogo.
A reportagem, assinada por Vasco Rocha, destaca que a cidade teve "a oportunidade de assistir a segunda grande e sensacional surpresa das provas semifinais da Copa do Mundo". Além disso, afirmou que a torcida vibrou "de emoções, empolgada e exultante, a queda espetacular do English Team, que se apresentara com as credenciais do favoritismo e a medir-se contra um adversário cujas qualidades futebolísticas ainda não deviam ser postas em acentuado relevo".
A forma como os americanos foram apoiados e o domínio americano encheram os olhos na época. Isto foi descrito no gol dos Estados Unidos:
- Incentivados pelos aplausos, os americanos empolgaram-se pela luta e passaram a jogar muito melhor do que os ingleses não só em técnica, mas em vibração e entusiasmo, em disposição para a luta. Aos 23 minutos, registrou-se um ataque muito bem conduzido pelo incansável Pariani.
Controlando a pelota, o meia-esquerda americano venceu com facilidade a defesa inglesa. A pelota dançou dentro da área até que foi parar junto de Gaedjens. Este, rapidamente, se livrou de Aston e, em seguida, de Ramsey, para desferir potente tiro que venceu a perícia de Williams. Verificou-se uma cena de verdadeiro delírio entre os americanos e o público que o estimulava para a luta".
O QUE ACONTECEU COM OS ESTADUNIDENSES?
A partir da vitória sobre os ingleses, os americanos ficaram mais empolgados e entraram no triangular classificatório para a fase final com Espanha e Inglaterra. Porém, eles viajaram para Recife, já eliminados, para enfrentar o Chile.
Os Estados Unidos saíram perdendo para os chilenos por 2 a 0, mas empataram em quatro minutos após saberem que a Espanha estava empatando com. Porém, os chilenos fizeram mais três e fecharam a conta. Eles precisavam que os espanhóis perdessem para seguir sonhando em ir para a fase final. Além do mais, Telmo Zarra marcou o gol da vitória da Fúria e extinguiu qualquer chance de qualificação dos Yankees. Assim se despedia a seleção estadunidense.
Eles voltaram felizes pela façanha, mas não foram recebidos com festa e a repercussão na mídia nem foi muito grande, visto que o "soccer" era deixado de lado no país.
O autor do gol, Gaetjens, que era haitiano, foi jogar na França após o Mundial e depois voltou para o Haiti. Como sua família era contrária ao regime ditatorial liderado por "Papa Doc" Duvalier, ele foi perseguido e preso em 1964. Inclusive, foi conduzido para a prisão de Fort Dimanche, uma prisão marcada por diversas brutalidades Depois disso, o atleta nunca mais foi visto.
Os ingleses perceberam que não eram mais o time a ser batido depois disso e a imprensa escondeu a derrota da equipe, substituindo por outras notícias. Além disso, a Inglaterra teve outras duas grandes derrotas nos anos 50: ambas foram goleadas para a Hungria Sob o comando de Alf Ramsey, os britânicos aprenderam com os erros na década de 1960 até serem campeões mundiais em 1966.
Em Copas, EUA e Inglaterra só voltaram a se enfrentar em 2010 e empataram em 1 a 1. Gerrard abriu o placar para os europeus, mas o empate americano se deu com um gol de Dempsey, com um frango do goleiro Green. A Inglaterra nunca venceu os Yankees em Mundiais.
Apesar de o futebol não fazer muita parte dos Estados Unidos -ainda mais naquela época - a vitória está entre as maiores zebras da história das Copas. Isso mostra que mesmo em um esporte que é secundário, uma façanha no maior palco da maior modalidade no planeta, nunca será esquecida.