Jogos do Irã na Copa são marcados por protestos devido às tensões que assolam o país
Atletas e torcedores se manifestaram na estreia da equipe, diante da Inglaterra, e indicaram que conduta tende a se repetir no decorrer do torneio
A estreia do Irã na Copa do Mundo de 2022 não ficou marcada apenas pela goleada por 6 a 2 que a seleção sofreu para a Inglaterra. Houve sucessivos protestos tanto no campo quanto nas arquibancadas do Estádio Khalifa. O grupo do Irã desembarcou no Qatar convivendo com os os ecos de um momento turbulento do regime de uma linhagem mais conservadora que está no poder há 40 anos em seu país de origem.
Professor de Relações Internacionais da Uerj, Paulo Velasco detalhou como o regime no qual os aiatolás (mais altos dignatários do Islamismo) têm presença importante na política continua a ter relevância no Irã.
- É um regime que se perpetua muito pela capacidade de penetração em todas as esferas da sociedade. A religião é usada como instrumento para penetração e causa impacto em tudo: no cotidiano, nas atividades econômicas, na forma de se vestir. Isso tem um peso, uma dimensão hegemônica muito forte. Também há uma intimidação, que foi construída pela via da articulação de religião e política. A religião legitimou o regime dos aiatolás - afirmou ao LANCE!, acrescentando:
- Ao mesmo tempo, há uma capacidade coercitiva. É um regime que não tem pudor em silenciar opositores e criticos, como vemos agora nos protestos que acontecem no Irã...
O ESTOPIM
O Irã viu uma grave tensão política ser desencadeada em agosto, quando Mahsa Amini foi morta após ter sido presa. A jovem não havia coberto a cabeça com o véu, conforme mandam as leis no país para as mulheres. O episódio gerou intensos protestos dentro do país e a comunidade do futebol iraniano reagiu fortemente.
O professor de Relações Internacionais da Uerj contou o deu uma guinada e levou o país a adotar estes costumes.
- O ponto de partida foi a Revolução Iraniana de 1979, onde se pôs fim à monarquia do Xá Mohammad Reza Pahlevi, um político que estabelecia bom diálogo com o Ocidente. Com a Revolução, introduziu-se outro sistema no qual política e religião passaram a se confundir. Não chega a ser uma teocracia propriamente, como muitos caracterizam. Porém, sem dúvida nenhuma, há pouco mais de 40 anos, a influência religiosa no agir e no fazer política no Irã é imenso - afirmou.
Os protestos após a morte de Mahsa Amini têm a ver com uma outra característica forte iraniana.
- Há uma influência em especial nestes protestos pelas críticas em relação ao vestuário, ao uso de véus e outras questões. Eles contestam a forma como o cotidiano passou a ser definido pelo rigor de uma religião islâmica em sua vertente xiita - afirmou o professor de Relações Internacionais da Uerj, ressaltando:
- O Irã é o grande representante da religião xiita. Com isto, acabou-se impondo um conjunto amplo de restrições individuais e por força de imposições que acabam tendo uma visão mais religiosa do que política - completou.
Desde 1981, nenhuma mulher tem a permissão para assistir a um jogo de futebol, mesmo que esteja acompanhada de um homem. Em 2019, o procurador-geral do país Mohamed Montezeri disse que se uma mulher assiste a homens com as pernas de fora praticando esportes estaria sendo guiada ao pecado.
- O aiatolá (atualmente Ali Khamenei) tem um poder político, não só religioso. Seu poder, muitas vezes, se sobrepõe ao do presidente iraniano - destacou Paulo Velasco.
Aos olhos do professor de Relações Internacionais da Uerj, a morte de Mahsa Amini deu margem para a revolta atual.
- A faísca da insatisfação geral foi a morte de Mahsa Amini. Porém, não são só os costumes que causam incômodo aos iranianos. Há uma crise econômica no país, que de alguma tem a ver com as sanções impostas pelos Estados Unidos. Estas sanções prejudicaram a economia do Irã, pois o país depende do petróleo e se viu esgarçado no seu dia a dia. Isso causou uma derrota dos moderados para o (atual presidente) Ebrahim Raisi, um político de linhagem mais conservadora. - disse Paulo Velasco.
REAÇÕES NA ARQUIBANCADA E SILÊNCIO EM CAMPO
Pouco antes do início da partida do Irã e Inglaterra, sequências de sons e imagens (entre elas, vaias) chamaram atenção do mundo. Durante a execução do hino nacional, os atletas iranianos se mantiveram em silêncio. Nas arquibancadas, bandeiras e cartazes em favor da liberdade feminina no país foram levantadas pelos milhares de iranianos presentes no estádio. Parte da torcida vaiou o próprio hino do Irã.
O silêncio do time durante o hino foi noticiado abertamente pela imprensa reformista iraniana, que definiu a atuação do time no primeiro tempo como uma humilhação. A agência de notícias pró-governo Fars não fez menção ao protesto em uma extensa cobertura do jogo.
Velasco apontou algumas nuances em relação aos protestos que os iranianos fizeram em campo.
- Trata-se de uma demonstração de crítica que, certamente, não pegou nada bem aos olhos do regime. O regime atual não gosta de ser desafiado, esta foi uma crítica a tudo o que está acontecendo no Irã. Foi exposto para o mundo um sinal claríssimo de tudo o que ocorre no país. Este protesto ganha mais proporção quando acontece em uma Copa do Mundo, com seu alcance midiático.
A COMUNIDADE ESPORTIVA EXPÕE OPINIÕES SOBRE AS TENSÕES
Astro do futebol iraniano, Sardar Azmoun se manifestou por diversas vezes nas redes sociais com mensagens contra o governo. Ídolos do passado como Ali Karimi, que jogou no Bayern de Munique, também demonstrou apoio à causa feminina no país.
Principal jogador do futebol iraniano nos anos 2000, o ex-meia é um dos que protestam contra a proibição de mulheres frequentarem estádios. Após a morte de uma torcedora que foi disfarçada para ver uma partida de seu time de coração, ele pediu para que o público boicotasse os estádios iranianos. O capitão da seleção na época também se pronunciou dizendo que o banimento se dava por ideias ultrapassadas e vergonhosas.
As reações foram além da causa feminina. Recentemente, na cidade curda de Mahabad, que foi invadida pelo exército do país, 11 pessoas morreram, segundo relatos. Soldados chegaram em veículos blindados e atiraram em prédios, no que foi descrito como uma forma de lei marcial.
O treinador da seleção de futebol, Carlos Queiroz, disse em uma coletiva de imprensa que os atletas iranianos são livres para se manifestar, independentemente dos riscos envolvendo o relacionamento dos jogadores com a federação.
Em entrevista antes do jogo, Ehsan Hajsafi, o capitão iraniano, abriu suas falas dizendo "em nome do deus do arco-íris". A frase foi proferida por um menino Kian Pirfalk, de dez anos, morto por forças de segurança iranianas.
No fim de semana, o chefe da federação de boxe, Hossein Souri, e dois boxeadores da equipe juvenil não conseguiram retornar ao Irã com sua equipe. Com isto, buscaram asilo político. O fato levou o jornal conservador Kayhan a exigir que as autoridades tomassem mais cuidado ao examinar altos funcionários em federações desportivas.
Nos últimos tempos, o governo do Irã tem liberado a presença de mulheres em alguns jogos, principalmente, da seleção iraniana. A FIFA também promete contribuir para ajudar nesta questão, mas a aberturas casuais são consideradas, na maioria das vezes, como uma demonstração de estabilidade às autoridades globais.
Enquanto isto, a situação no território iraniano segue uma incógnita. Especialista em Relações Internacionais, Paulo Velasco ainda crê que falte um longo caminho até o Irã chegar a um desfecho mais moderado.
- Muitos entendem os protestos atuais como o início do fim do atual regime. Mas para isso, é necessário um apoio mais amplo tanto da sociedade quanto de segmentos da própria política do Irã ou da religião. Eles têm de reconhecer que é um momento de transição, que garanta maiores direitos às mulheres. Senão, continuaremos a ver movimentos que têm um peso significativo, mas do outro lado haverá repressões violentas, como tem sido atualmente caso - e frisou:
- O regime iraniano não se preocupa com críticas em fóruns multilaterais, com direitos humanos. Não é por aí que eles vão se dobrar - completou.