Marrocos e Portugal têm lembranças de conflito no qual surgiu um mito. Entenda!
Ocorrida no século XVI, Batalha de Alcácer-Quíbir causa 'desaparecimento' de rei português e cria lendas e movimentos que ecoam até entre brasileiros
As quartas de final da Copa do Mundo abrirão espaço para um confronto que ficou para a história por outras lembranças. Neste sábado (10), às 12h (de Brasília), Marrocos e Portugal reúne um panorama de luta que gerou uma lenda presente até os dias atuais.
LUTA POR RETOMADA DE TRADIÇÃO PORTUGUESA
Passado seu período de conquistas e de navegações, Portugal lidava no século XVI com um período de declínio do império e tentava achar caminhos para levar a Corte a obter lucro. Em 1568, ascendeu ao trono Dom Sebastião, o Desejado, com planos ambiciosos.
- Dom Sebastião assumiu o poder bem cedo e teve uma educação muito religiosa, era um católico fervoroso. Mas em seu reinado quis trazer de volta a ambição de expansão portuguesa de outras épocas. Havia a lembrança de navegações constantes... - detalhou ao LANCE! Márcio Scalercio, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, ressaltando:
- O grande passo era impor a tutela portuguesa no Norte da África. O objetivo era não só evitar o domínio do Império Otomano, de maioria muçulmana, mas também ficar com os dividendos da região e dar impulso a uma cruzada. Havia essa lembrança latente de tempos remotos - completou.
Em 24 de junho de 1578, 500 navios portugueses com a estimativa de 20 mil homens partiram de Lisboa rumo ao território africano. Professor de História da Uerj e da UFF, Marcus Dezemone explicou que um problema cercava a expedição.
- Portugal experimentou um momento de expansão comercial com as navegações e trocas culturais associadas ao Rei Dom Manuel, o Venturoso, que era monarca durante as conquistas nas viagens de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral. No entanto, o lucro com as especiarias já não era mais o mesmo no reinado de Dom Sebastião. Só que o jovem monarca acreditava que poderia se expandir para a África, reativando esse espírito cruzadista - afirmou.
A BATALHA DE ALCÁCER-QUIBIR
Os portugueses, que tinham "reforço" de outros países, lidaram com alguns dias de peregrinação até chegarem ao território do Norte africano..
- A frota e o exército comandados por Portugal eram razoáveis. Além de portugueses, havia unidades de mercenários de outras nacionalidades que desembarcaram na região. O problema é que houve decisões desastrosas. O exército seguiu caminhando por uma semana até o local da batalha e chegou exausto para enfrentar os marroquinos. Foi desastrosa ainda a discrepância de comunicação dos portugueses com os mercenários vindos de outros países - disse o professor Márcio Scalercio.
Ocorrido em 4 de agosto de 1578, o episódio também ficou também conhecido como a Batalha dos Três Reis. Em Alcácer-Quibir, Dom Sebastião tinha como aliado o exército de Mulei Mohammed (Abu Abdalá Mohammed Saadi II e que tentava recuperar o trono da dinastia Saadiana). Já o sultão Mulei Moluco (Abu Maruane Abdal Malique I Saadi, tio de Mulei Mohammed) tinha o poder e era apoiado pelos otomanos.
A Batalha de Alcácer-Quíbir terminou após horas, em meio a uma repressão brutal sofrida pelo exército português. Grande parte da nobreza de Portugal morreu no conflito. Os reis também não resistiram ao conflito. Porém, uma lenda ficou para a posteridade.
EMERGE O MITO DO SEBASTIANISMO
Enquanto os sultões tiveram suas respectivas mortes confirmadas, Dom Sebastião constou como desaparecido ao fim da batalha. Neste momento, Portugal lidou com uma mudança de rota no poder.
- A morte do jovem rei português Dom Sebastião, que não tinha herdeiros, abriu uma grave crise. A regência do reino ficou primeiro com o octagenário Cardeal Dom Henrique, que faleceria em 1580. Então, o rei da Espanha, Filipe II, alegou que tinha vínculos dinásticos com Dom Manuel (rei de Portugal entre 1459 e 1521) e uniu as coroas de Madri e Lisboa. Isso deu origem à União Ibérica, quando a independência portuguesa foi perdida, perante sua subordinação à Espanha - afirmou o historiador Marcus Dezemone.
Cercados por angústias, os portugueses se apegaram a uma esperança com tom messiânico para sonharem com dias melhores.
- Durante a União Ibérica, muitos alimentaram a crença de que Dom Sebastião, considerado desaparecido, retornaria para liderar Portugal na recuperação da sua soberania - explicou Dezemone.
Alguns julgavam que o rei estava escondido em uma ilha ou território esperando o melhor momento para regressar. O Sebastianismo não chegou a se concretizar, mas é recheado de simbolismos na história de Portugal. Passados tantos séculos, ainda está no país entre folclores e até monumentos.
- Até hoje, no Mosteiro dos Jerônimos, construção em estilo manuelino em Belém localizada à beira do rio Tejo, está o túmulo vazio de Dom Sebastião esperando pelo seu retorno - disse o historiador da Uerj e da UFF.
Ainda há controvérsias históricas em torno de onde estão os restos mortais de Dom Sebastião.
MUDANÇAS SIGNIFICATIVAS PARA O BRASIL
Os desdobramentos em torno do sumiço de Dom Sebastião foram relevantes para o Brasil. Sucessor no trono, seu tio-avô, o Cardeal Dom Henrique, ficou no poder por dois anos. Contudo, sua morte fez com que a dinastia de Avis perdesse sua autonomia.
Entre 1580 e 1640, com Filipe II à frente da União Ibérica, as fronteiras entre os reinos de Portugal e Espanha ficaram mais flexíveis e isto permitiu que o território brasileiro do país fosse expandido. Somente com os Bragança, a dinastia de Avis retomaria o poder.
O mito do Sebastianismo também atravessou fronteiras. O professor Marcus Dezemone detalhou a chegada desse tom messiânico ao Brasil.
- O movimento sebastianista foi tão forte que veio para a América, com a colonização do Brasil. Ele esteve presente em episódios como a Guerra de Canudos, que aconteceu no interior da Bahia entre 1896 a 1897. Os sertanejos que tinham a confiança em Antônio Conselheiro acreditavam que Dom Sebastião iria ajudá-los - recordou-se o professor.
Houve outros episódios sebastianistas. Existem registros de que, em 1820, em Bonito, no estado de Pernambuco, aconteceu um movimento com influência em Dom Sebastião na Serra do Rodeador, marcado pela "Tragédia do Rodeador". Já em 1838, teria acontecido outro movimento em São José do Belmonte, em Pernambuco, na Pedra do Reino (resgatada pelo escritor Ariano Suassuna no livro "O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta").
INFLUÊNCIA DA BATALHA
No Amapá, a Batalha de Alcácer-Quíbir influencia toda uma cidade. Mazagão é uma colônia portuguesa no Marrocos que foi desativada e, posteriormente, transferida para a Amazônia no século XVIII. Após se desenvolver em torno da cultura dos dois países, o legado permaneceu.
A Festa de São Tiago (que completou 245 anos) traz a batalha entre mouros, que representam o Marrocos, e cristãos, representantes de Portugal. Na cidade estão hasteadas bandeiras dos dois países junto às do município, do Amapá e do Brasil.
Resta saber quem levará a batalha nas quartas de final da Copa entre Marrocos e Portugal.