A Copa América e as lembranças guardadas de um sobrevivente
Jorge Sepúlveda, que por muitos anos viveu no Brasil, revela com exclusividade ao Terra imagens do tsunami que devastou sua cidade natal
Quando a terra tremeu atingindo 8,5 graus na escala Richter no Oceano Pacífico, no Chile, na madrugada do dia 27 de fevereiro de 2010, a cidade mais próxima do epicentro daquele terremoto foi Dichato, ao lado de Tomé, no litoral, e próximo de Concepción – a segunda cidade mais populosa do país. Ali, no pequeno vilarejo, 18 pessoas perderam a vida. E 80% do território foi demolido pelo tremor e, principalmente, pelas ondas gigantes. Todo e qualquer jornalista do mundo, há cinco anos, gostaria de estar ali para registrar o impacto da destruição de uma das maiores catástrofes naturais do continente sul-americano.
Jorge Sepúlveda não é fotógrafo profissional, mas naquela madrugada, depois do enjoo de um terremoto que parecia não ter fim - "é como um carrossel que você quer sair e não podem" -, teve apenas uma certeza: “lembro de uma senhora passando e gritando: ‘tsunami, tsunami’. Nunca vou esquecer disso. A gente sabia que se a terra tremeu daquele jeito, a possibilidade de tsunami era real. Eu tinha que ir buscar os meus pais”.
Jorge estava de férias em Dichato, sua cidade natal – morou por 12 anos em Londrina, no interior do Paraná. Em bom português, em que diz uns “pelo amor de Deus”, ou pergunta, ironicamente, “você está me tirando, cara”, hoje ele trabalha para um órgão de turismo chileno. Aquela noite, claro, não sai da sua cabeça. Só que hoje o sorriso e as piadas voltaram – junto com a reconstrução quase total do município e de outros próximos, também arrasados.
Neste encontro, casual ou não, com a reportagem do Terra, ele resolveu tirar estas lembranças do fundo do baú. Como numa espécie de “depoimento-terapia”, onde revive as suas cicatrizes, e as transparece em imagens que estava guardadas a sete chaves por cinco anos. Segundo ele, as fotos que você acompanha neste texto foram para um jornal de Londrina, que ele não sabe se publicou ou não, e mostradas para alguns amigos. E só.
“Pediram para nunca mais ver aquilo. Acabei guardando. Nunca mais tinha mostrado para ninguém, ficaram guardadas no meu computador. Mas eu sabia que essas fotos eram importantes”, afirmou. “Já que a Copa América te trouxe aqui, que seja ela a responsável por trazer do baú essas lembranças. Tristes, sim, mas lembranças, que eu te dou e te agradeço por você publicá-las”, completou.
No dia de São Pedro, 29 de junho, data que marca as festas juninas no Brasil, o Terra foi convidado para acompanhar uma procissão de pescadores, a principal economia da região. Tudo em agradecimento apóstolo de fundamental importância para a formação da Cristandade. Momento de reflexão, pois. Ligo o gravador, pego o meu bloco de nota e, justamente do ponto onde ele se recolheu do alto do morro para se proteger das ondas gigantes, tomo este depoimento:
Jorge Sepúlveda, 53, sommelier e guia turístico
“Eu estava numa discoteca, tudo aconteceu na madrugada de uma sexta-feira para sábado. Era verão, muita gente de férias, quando a população aqui de Dichato triplica. Estava numa discoteca e, quando era por volta de 3h30, todo mundo começou a gritar. A terra se mexia de uma maneira que eu nunca tinha visto. Nós chilenos somos criados para saber como é um terremoto. Eu não tenho medo. Mas aquela noite foi diferente. Ficou tudo escuro. Imagina uma boate, com os canos de água se rompendo, e todo mundo gritando? Todo mundo pedia perdão à Deus. Durou muito tempo. Muita gente vomitava. Porque um terremoto te enjoa, uma que durou mais de dois minutos, enjoou todo mundo. É como um carrossel em alta velocidade, que você quer sair dele e não pode”.
"Depois que, enfim, acabou, e conseguimos sair, já se podia ver algumas crateras enormes. Onde tinha luz, claro. Todo mundo correu para as suas casas, atrás de suas famílias. Lembro de uma senhora passando e gritando: ‘tsunami, tsunami’. Nunca vou esquecer disso. A gente sabia que se a terra tremeu daquele jeito, a possibilidade de tsunami era real. Eu tinha que ir buscar os meus pais”.
“Você já deve ter ouvido falar que o governo do Chile não emitiu o alerta oficial de tsunami, né? Mas aqui a gente sabe o que fazer. Os próprios Carabineros na rua já alertavam a população para todo mundo ir para o cerro (morro, parte alta). Eu agradeço todos os dias para Deus e para um dos carabineros. Primeiro, agradeço por estar ali, naquele momento, de férias, e poder ajudar os meus pais, que são bem idosos. E depois, agradeço ao carabinero que convenceu minha mãe a sair de casa. Ela não queria deixar as coisas de uma vida inteira para trás. É muito teimosa. Mas ele foi duro com ela, falou alto e ela acabou saindo”.
“Não peguei nada além da minha carteira e minha câmera fotográfica. Sabia que eu teria o que registrar. Em 25 minutos daquele terremoto já estávamos no alto do morro (onde Jorge dá este depoimento, exatamente no ponto onde ficou observando as ondas). Estava tudo muito escuro, mas as luzes, o curto circuito, causada alguns clarões em que a gente podia ver o estrago. E podia ver que o mar tinha recolhido também. Era tudo areia, até o horizonte ali daquela ilha (aponta). Sei lá, deve ter um quilômetro até lá. Ali tivemos a certeza de que fizemos a coisa certa. Era só esperar”.
“Foi por volta de 5h30 que ela chegou. Tinha uns 15 metros, claro que na hora não dá para saber, ms depois a gente ficou sabendo. Olha, foi o inferno na terra. Tudo batia em tudo. Um grande dominó na água. Nada é pior do que um tsunami em termos de catástrofe natural. É que vocês brasileiros não fazem ideia do que é isso (não fazemos mesmo). Destrói tudo. Lembro bem dos rostos das pessoas. Todo mundo com aquele olhar de medo, de que pode perder a vida. Só nessas ocasiões em que você se vê em meio ao apocalipse é que sente isso”.
“Mais uma vez, agradeci por estar ali naquele momento para ajudar os meus pais, junto com o meu irmão, e minha cunhada. Estava de férias, depois de oito anos já morando em Londrina, no Paraná. Bom, sobre a onda: a primeira já acabou com muita coisa. Era um mar de luzes flutuantes dos faróis dos carros e das explosões das fiações, de tudo. Ficou aquele mar de coisas retorcidas. Casas sendo levadas. Algumas pararam na areia, junto ao mar. Quando a primeira onda passou. Aí é que morava o perigo”.
“As pessoas são teimosas. Um tsunami, em geral, nunca é feito de uma só onda. São algumas. E nunca dá para saber o intervalo exatamente. Das 18 pessoas que morreram aqui em Dichato, a grande maioria morreu quando desceu para buscar pertences do que sobrou das casas, ou na ânsia de ter a certeza de que tinham perdido tudo mesmo. Nenhum dinheiro vale a sua vida. Todo mundo sabe disso. Eu não arredei meu pé dali. Tentei convencer as pessoas. A maioria ficou, mas alguns foram teimosos e perderam a vida. Infelizmente”.
“Lá pelas 7h15, por aí, veio a segunda. Já estava mais claro, ainda não totalmente (no Chile o amanhecer é mais tarde do que no Brasil), mas já dava para termos uma noção de que a cidade tinha sido varrida do mapa. Pouca coisa ficaria em pé. Não é surreal você ver uma casa inteira no meio do mar, e barcos no meio da praça? Lá pelas 9h, então, que veio a terceira onda. André, esta foi a pior de todas. Sinto que terminou de levar a alma da gente. O dia já estava lindo. Sol, sem nenhuma nuvem no céu. Quer dizer, parece que nuvens tinha baixado, porque a fumaça que saia do meio da água dava a certeza de uma grande catástrofe”.
“Foi um clima enorme de desolação. Era o capeta dando volta por aqui. Lá pelas 11h, com a água já recuada, aos poucos, as pessoas começaram a descer. Não se tinha luz, não se tinha água, não se tinha comida. A sorte da minha família é que no meio daquele caos, o restaurante da minha irmã, por sorte, ficou em pé. E na parte alta ela tinha geladeira com muitos mantimentos. Foi a sorte. Lembro dos peixes ainda vivos trazidos pelo mar se debatendo no terceiro andar”.
“Ajudamos alguns amigos, mas claro que não dava para todo mundo. Começaram a ocorrer muitos saques na cidade. Veio então o clima de medo. Nossa casa, arrasada, restou o restaurante. Tinha vindo para passar duas semanas, e acabei ficando dois meses. Ajudei meus pais na reconstrução. Minha namorada, em Itajaí (SC), e outros amigos do Brasil, eu só consegui contato depois de uns oito dias. Lembro que depois que eu voltei ao Brasil, e a reencontrei, depois que chegamos na sua casa, eu não conseguia mais parar de chorar. Tive uma crise. Acho que foi o momento em que, enfim, eu botava tudo para fora”.
“Cerca de uma ano depois, quando eu visitava aqui de novo, e não é que tivemos um novo tsunami? O terremoto do Japão foi tão forte que atingiu a nossa costa também. Voltamos a viver todo o terror. Não se destruiu muito, foi mais fraco, mas foi como automaticamente viver de volta todo aquele terror. Fiquei pensando se toda a vez que eu voltasse para cá agora eu iria ter essa experiência horrível. Graças à Deus até hoje não teve mais tsunami. Terremoto é muito comum, mas a gente tem medo mesmo é de tsunami”.
“Em 2014, eu voltei de vez para cá após 12 anos no Brasil. Aí veio a Copa América, conheci vocês e lembrei dessas fotos. Na época, eu mandei para uns amigos de um jornal de Londrina. E mostrei para algumas pessoas. Não sei se o jornal publicou alguma coisa, mas eu sei que quando mostrei para algumas pessoas, amigos, ninguém gostou. Pediram para nunca mais ver aquilo. Acabei guardando. Nunca mais tinha mostrado para ninguém, ficaram guardadas no meu computador. Mas eu sabia que essas fotos eram importantes".
"Poucas pessoas têm a oportunidade de estar no momento exato de um tsunami, e poder registrar tudo o que aconteceu. Qualquer jornalista gostaria de ter estado ali. Acho que hoje as pessoas já digeriram, a cidade se reconstruiu. Já que a Copa América te trouxe aqui, que seja ela a responsável por trazer do baú essas lembranças. Tristes, sim, mas lembranças, que eu te dou e te agradeço por você publicá-las. Obrigado, André”.