Dez diferenças e semelhanças de cobrir um protesto no Chile
Repórter do Terra tem a primeira experiência de cobrir uma manifestação fora do Brasil
Cobri a fundo todas as manifestações que ocorreram no Rio de Janeiro no ano de 2013 - a tomada e o caos em chamas da Assembleia Legislativa, por exemplo - e até no fatídico dia em que o Santiago Andrade foi atingido e morto por um morteiro, em 2014, eu estava lá. Fiz curso do Exército para situações de risco. E sempre nutri não o desejo de me meter no meio de uma guerra entre países - já estou meio velho para isso - mas por conflitos urbanos em países além-mar. São esses os que sempre me interessavam, pois são as demandas do povo contra o governo. Dos subjulgados contra o poder absoluto. E não estou falando aqui de cobrir tiroteio em comunidades que o governo do Rio insiste em dizer pacificada.
Quando vi aquelas imagens da CNN da praça Tahrir tomada por milhares de pessoas, em 2011, no Cairo, em manifestos que derrubaram o ditador egípcio Hosni Mubarak, tão vidrado como uma final de Copa do Mundo eu fiquei diante da TV. Veio a primavera árabe e continuei me coçando. Na Turquia, via aqueles caras mascarados colocar as bombas de gás lacrimogêneo dentro de baldes de água, estrategicamente localizados para abafar a fumaça, com tanta eficiência, que isso só me instigava ainda mais.
Mas como a Turquia é longe pra caramba, o Egito nem sem fala, e a Copa América desse ano vai ser no Chile, felizmente me mandaram para cá, Santiago. E justamente no primeiro dia de jornada, qual a primeira pauta do dia? Protesto de estudantes e professores, que querem o que chamam de Copa da Gratuidade: um ensino não só justo, como gratuito, livre e laico. Nada mal: afinal, os chilenos têm um bom histórico de protestos e a onda de estudantil de 2011 chamou a atenção de todo o mundo na mesma medida.
Por isso que o desafio, com todos os cuidados de não se querer chegar no olho do furacão, com os devidos utensílios de segurança, vale muito. E as diferenças e semelhanças com os protestos, sobretudo de 2013 (os desse ano tem um cunho e um público completamente distintos), eu escrevo abaixo em 10 itens.
Vale para você que já saiu para a rua alguma vez na vida com alguma reinvindicação, já se engajou ou mesmo só viu tudo pela TV. Nem 100% do que escrevi abaixo eu presenciei - mas tive a oportunidade de conversar com muitos jornalistas experientes nesse tipo de cobertura, além de estudantes, enfim, gente que vive o ambiente de protestos na capital chilena. Confere aí, então.
Black bloc = encapuzado. Pero...
Sim, eles existem no Chile, cobrem o rosto e, justamente por isso, recebem o nome de “encapuzados”. Se vestem de preto em sua maioria. Rolam várias bandeiras de anarquia. Mas dispensam aquele gritinho terrível de “uh, uh, uh, uh” como se fossem animais irracionais. Agem com mais foco, e não fazem questão alguma de anunciar a chegada - salvo pela cor preta.
Seus atos de violência obrigam os comerciantes a fecharem os estabelecimentos e são os alvos dos carabineiros - a polícia chilena - que chegou a testar uma tática de balas de paintball para marcar os manifestantes anárquicos com tintas que facilitassem a posterior identificação. Só que existe uma diferença aqui: não são apenas os encapuzados que vão para o pau. Nas veias chilenas, o tema da revolução, se não inclui armas letais, tem pedras e porradas.
Certeza que vai dar m...
Encontrei um colega fotógrafo de uma agência internacional que logo me disse: “aqui no Chile, você sai para cobrir e não fica naquela de será que vai ter confronto. Aqui dá m... sempre”. Foi com esse sentimento que me preparei para tiros, bombas e gás. Aliás, antes mesmo do horário marcado para a marcha, um grupo já queimou umas madeiras e interditou uma importante avenida do centro de Santiago, próximo ao local marcado para a concentração - a Universidad de Santiago. Às 7h30, a polícia penou para liberar o tráfego, já pesado.
A marcha, que de acordo com os organizadores reuniu 200 mil seguidores, foi até que tranquila e bonita (fiquei curioso para saber quantas pessoas a PM paulistana chutaria na ocasião). Vi alguns garotos recolhendo pedras no caminho, e nada além. Aliás, os carabineiros não cercam, tampouco se infiltram (ao menos de uniforme) entre os manifestantes. Embora o saldo do dia tenha sido pequeno em relação ao usual. Apenas alguns “parcos” jatos d 'água.
O “jatão” de água chileno
Essa acho que todo mundo já sabe, mas esses jatos são mesmo bem poderosos. Além de machucar e derrubar no chão, no intuito da dispersão dos manifestantes, é o grande temor dos fotógrafos e cinegrafistas. É capaz de destruir lentes, câmeras, equipamentos caros. Alguns usam a tática de ter sempre em mãos uma jaqueta para bloquear o fato nessas horas. Mas que fique bem claro, porém, que capacete e máscara de gás são itens extremamente necessários. E mais usados por quem está lá para protestar e (literalmente) brigar por seus direitos - não apenas por jornalistas em situação de registro.
A verdade não é dura
Onze em cada dez jornalistas que cobriram protestos no Brasil já escutaram o lema: “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”. E com certeza já viu algum repórter da emissora dos Marinho ser expulso de algum ato. No Chile não tem dessa: jornalista está lá para trabalhar e pronto. Ninguém me olhou com cara feia e todos os colegas que consultei dizem que o seu problema é desviar das pedras, das balas de borracha e dos canhões de água. Nada mais.
Agora, quer ver uma semelhança? Estava lendo a aba de comentários da reportagem produzida pelo diário La Tercera, de Santiago, sobre o ato e o que vejo ali? “Esses delinquentes não têm mais o que fazer da vida”, disse um. “Saem nas ruas, ferram com o trânsito, para quê”, disse outro. Ah, e vi gente batendo panela na manifestação também. Procurei coxinhas, mas só encontrei empanadas.
Mucha gente
Protesto chileno não tem essa de você perguntar para o colega jornalista ao lado e tentar mensurar se no local estão 50, 100, 300 pessoas. Se conta o número de manifestantes sempre por milhares, e não por centenas, como acontece muito no Brasil. Para um dia comum, pela tarde, e com uma demanda educacional, mesmo sem a precisão de se ter 200 mil pessoas, era fato que havia muita gente mesmo.
Direitos humanos x Médicos voluntários
O Instituto Nacional dos Direitos Humanos (INDH) do Chile é atuante e sempre se faz presente nos manifestos - eles possuem coletes azuis, da mesma for do capacete. Estão ali no auxílio de supostas detenções com abuso de autoridade, enfim, da mesma forma que ocorre no Brasil. Agora, ao contrário do Brasil, senti falta dos médicos (ou estudantes de medicina) voluntários. Aqueles seres humanos de Deus que sempre aparecem com o leite de magnésio para ajudar os olhos das pessoas ardendo pelo gás. Além, claro, de contarem com itens de primeiros socorros - fundamental em situações como essa.
Dá para almoçar
Você, pobre repórter-cinegrafista-fotógrafo, que já cobriu muitos protestos pelo Brasil e sempre se esquecia de levar alguma coisa para comer na mochila, que fosse uma barra de cereal, jamais teria esse problema no Chile. Enquanto no Brasil é uma pipoca, amendoim, e olhe lá, em território chileno há variedade.
É uma fartura só: tem churrasco, tem empanadas, tem pizzas (assadas na hora), sanduíches diversos (tem até integral) e dá até para comer uma sobremesa nas barraquinhas de doce. Uma beleza. Curioso, fui perguntar para um deles o que faziam na correria, no conflito: “somos que nem índios que preveem a chuva. Antes de eles pensarem em brigar, já recolhi tudo”. Comi uma empanada que me custou mil pesos chilenos (algo em torno de R$ 4,50) feliz da vida.
Grades infelizes
Os protestos no Chile, em geral, ocorrem no que eles chamam de Alameda, um corredor de avenidas largas, assim como as calçadas, no melhor estilo europeu, em que se vai mudando nomes - mas se tem a sensação de estar na mesma área. No caminho, para impedir que transeuntes atravessem as largas vias fora da faixa de pedestres, eles colocam grades. E é aí que mora o perigo: em situações de conflitos, onde o corre-corre é inevitável, imagina encontrar uma grade pela frente? Tropeçar? Cair? Ser pisoteado? Situação rápida de ser resolvida.
Dupla função
Santiago é uma cidade fria - e o inverno por aqui não é desses de ilusão, como no Rio de Janeiro. Faz frio mesmo. E o sol demora a sair pelo fato de a cidade estar situada num vale logo após a cordilheiro dos Andes. Bom, sendo assim, e diante das inúmeras bombas de gás do histórico de protestos, quem não pode arcar com uma máscara de proteção decente, usa o cachecol. Protege o pescoço na hora do vento gelado, tapa o nariz na hora do gás indesejado. No Brasil, manifestante se vira com camiseta ou com qualquer pedaço de pano mesmo. Cachecol pinica no calor, deixa o cidadão ainda mais suado. É item dispensável.
Aliás...
Falando em cachecol. Se no Brasil se transpira horrores para se cobrir o rosto e ser um black bloc, no Chile tudo vira questão de elegância. Jaquetas, blazers, calças...Não é que a galera se veste bem para ir ao protesto? Deve ser o frio...