O Brasil vive uma moda de técnicos estrangeiros? Números apontam presença maior após 'efeito Jesus'
De 2020 para cá foram contratados 41 treinadores de fora do Brasil; espaço ocupado por não brasileiros em times da elite do futebol brasileiro na atual temporada é de 50%
Ao longo dos últimos 20 anos, 62 técnicos estrangeiros trabalharam em times da primeira e da segunda divisão do futebol brasileiro. Portugueses e argentinos são os que mais tiveram representantes no período, com 12 e 11 cada, respectivamente. O "boom" de treinadores de outras nacionalidades no Brasil aconteceu após o sucesso de Jorge Jesus no Flamengo, em 2019, e se consolidou com a trajetória vitoriosa de Abel Ferreira no Palmeiras. Desde 2020, foram contratados 41 técnicos estrangeiros no futebol nacional. Hoje, metade dos times da Série A do Brasileirão, dez, tem técnicos nascidos fora do Brasil.
Seguindo a tendência dos últimos anos, os portugueses são a maioria entre os estrangeiros na elite do futebol nacional. Alguns dão certo, outros nem tanto. Ocorre que os dirigentes ainda estão dispostos a apostar neles. Ao todo, são oito técnicos lusitanos: Abel Ferreira (Palmeiras), Vítor Pereira (Flamengo), Luís Castro (Botafogo), Renato Paiva (Bahia), Antonio Oliveira (Coritiba), Pedro Caixinha (Red Bull Bragantino), Pepa (Cruzeiro) e Ivo Vieira (Cuiabá). A primeira divisão ainda conta com dois comandantes argentinos, Juan Pablo Vojvoda (Fortaleza) e Eduardo Coudet (Atlético-MG).
Pepa, Renato Paiva, Pedro Caixinha e Ivo Vieira fazem trabalho inédito no País. Antonio Oliveira trocou o Cuiabá pelo Coritiba, enquanto Vítor Pereira, que deixou o Corinthians em dezembro alegando "motivo pessoal", assumiu o Flamengo. Ex-Internacional, Coudet retorna ao Brasil após comandar o Celta de Vigo para treinar o Atlético-MG, que ganhou do Carabobo em Minas por 3 a 1 nesta quarta na pré-Libertadores. Apenas Abel Ferreira, Antonio Oliveira e Vojvoda disputaram mais de uma temporada no futebol brasileiro.
Há pouco mais de dois anos no Palmeiras, Abel Ferreira é o técnico estrangeiro com o maior número de títulos no futebol brasileiro, com sete conquistas, duas a mais do que o compatriota Jorge Jesus. Vojvoda, do Fortaleza, vem logo atrás. São dois Estaduais e uma Copa do Nordeste erguidos com o Leão do Pici. O argentino Antonio Mohamed ficou apenas seis meses no Atlético-MG, mas o suficiente para conquistar a Supercopa do Brasil e o Campeonato Mineiro.
O uruguaio Paulo Pezzolano triunfou na Série B com o Cruzeiro e encerrou o período de três anos do time celeste na Série B, mas decidiu entregar o cargo após resultados ruins, dando lugar ao português Pepa. Hernán Crespo venceu o Paulistão com o São Paulo e acabou com uma fila de 16 anos do clube tricolor sem título no Estado. Outros estrangeiros a levar uma competição regional foram o argentino Jorge Sampaoli, com o Atlético-MG; o uruguaio Diego Aguirre, com o Inter; e o paraguaio Gustavo Morínigo, com o Coritiba. As conquistas enchem de esperança o torcedor, de modo a todos eles terem boa aceitação.
EFEITO JESUS
Apesar do sucesso recente dos portugueses no Brasil, o primeiro a assinar com um time brasileiro no século foi Paulo Bento, em 2016, no Cruzeiro. Ele ficou apenas 17 jogos no comando do time mineiro, saindo por causa de maus resultados no Brasileirão. Somente três anos depois um lusitano voltou a comandar uma equipe no Brasil. Jorge Jesus foi sondado pelo Vasco e chegou a acompanhar uma partida do time em São Januário. No entanto, o Flamengo foi mais rápido e contratou o treinador. Abria ali uma porta para os treinadores portugueses.
Jorge Jesus foi contratado em junho de 2019. Ao fim da temporada, o Flamengo acumulou as taças do Brasileirão e da Libertadores. As boas atuações do time rubro-negro transformaram alguns jogadores em ídolos, como Gabigol, Bruno Henrique e Arrascaeta. No ano seguinte, os cariocas se sagraram campeões estaduais e da inédita Supercopa do Brasil. Com a pandemia, o treinador aceitou uma proposta do Benfica e voltou para Portugal em julho.
O sucesso de Jesus teve impacto imediato. Em 2020, nada menos do que oito treinadores estrangeiros assinaram com times da Série A — três portugueses. Jesualdo Ferreira, no Santos, e Ricardo Sá Pinto, no Vasco, não tiveram o mesmo êxito do compatriota. O Flamengo, certo de que precisava de um treinador com grife europeia, apostou no espanhol Domènec Torrent, ex-auxiliar de Pep Guardiola — mesmo ele não tendo experiência na função. O clube terminou a temporada com Rogério Ceni no comando.
Contudo, Abel Ferreira consolidou a tendência de técnicos estrangeiros depois dos seguidos títulos conquistados com o Palmeiras. Em menor escala, o trabalho sólido de Vojvoda no Fortaleza, levando o time à Libertadores, contribuiu para que novos profissionais de outras nacionalidades desembarcassem no Brasil. Ao todo, 11 treinadores não brasileiros comandaram alguma equipe da Série A ou da Série B em 2022.
ESTRANGEIRISMO?
Ao longo dos últimos 20 anos, os clubes que mais tiveram estrangeiros no comando foram Atlético-MG, Flamengo, Internacional e São Paulo, com cinco treinadores cada. Entre os times citados, apenas a equipe mineira e o rubro-negro carioca têm um técnico de outra nacionalidade atualmente. Indo na contramão da tendência, o Fluminense é a única equipe entre as grandes do País que contou somente com brasileiros durante o período, no qual conquistou dois Brasileirões.
Renato Gaúcho foi um dos mais críticos à chegada de colegas de profissão nascidos no exterior. Em 2019, ele alfinetou Jorge Jesus, dizendo que o treinador português tinha obrigação de ter conquistado títulos importantes com o Flamengo por conta do grande orçamento do clube carioca para contratações. Quando assumiu o comando do time rubro-negro, em 2021, Renato fracassou e não ganhou troféus.
Sua crítica ganhou eco e repercutiu entre seus pares nos últimos anos, entre deboches e alfinetadas. Eles acreditam que há uma diferença de tratamento clara, principalmente da imprensa esportiva, em que os brasileiros são vistos como ultrapassados. Já os estrangeiros são exaltados e seriam percebidos como melhor preparados.
Neste ano, o técnico do Internacional, Mano Menezes, cutucou a imprensa brasileira alegando que os treinadores portugueses recebem tratamento privilegiado. "Vou começar a dar entrevistas em português de Portugal, porque eles criticam os jogadores abertamente e vocês (imprensa) acham bonito. Dizem que é personalidade, dizem que nós passamos a mão na cabeça dos jogadores e eles que estão certos. Isso eu ouço toda vez", disse Mano Menezes.
A ESCOLA PORTUGUESA
Portugal se especializou em formar treinadores principalmente por criar há mais de 30 anos um curso de formação na área. O futebol português começou a se transformar em um celeiro de treinadores em 1975. Na época foi criada em Lisboa a primeira especialização em futebol voltada para graduados em Educação Física. O curso atraiu tantos interessados que depois foi estabelecido um novo parâmetro para frear o excesso de treinadores certificados.
Nos últimos 30 anos, o curso organizado pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e pela Associação Nacional dos Treinadores de Futebol (ANTF) obteve sucesso a ponto de parte do currículo ser utilizado como referência pela Uefa para aplicação em outros países.
A Conmebol e a Uefa anunciaram no fim de dezembro um acordo sobre formação e capacitação dos treinadores da América do Sul e Europa. Os presidentes das entidades assinaram uma aliança de Acordo Operativo sobre o Reconhecimento Mútuo de Qualificações e Competências dos Treinadores e um Acordo Técnico para o Desenvolvimento dos Técnicos.
A Uefa e a Conmebol vão padronizar os cursos, com requisitos mínimos, com critérios e regras de formação, além da duração e quantidade de conteúdo de cada curso de treinador de acordo com sua respectiva entidade de formação.
A valorização do estudo dos técnicos brasileiros é recente. A CBF inaugurou o Curso de Formação de Treinadores apenas em 2009. Fundada em 2016, a CBF Academy ministra cursos técnicos que tratam desde a gestão do futebol até questões relativas a marketing esportivo e Recursos Humanos. A CBF exige que os treinadores dos times tenham a Licença Honorária, Pro ou A, ou, então, licença ou diploma estrangeiro equivalente que venha a ser reconhecido pela entidade.
Para treinar nos times das principais ligas europeias, a Uefa exige que os técnicos tenham a licença Uefa Pro, o que atrapalha o desembarque de técnicos brasileiros no continente. Sylvinho, ex-Corinthians, é um dos poucos que se encaixam no perfil. Recentemente, ele se tornou técnico da seleção da Albânia. /COLABOROU PEDRO RAMOS