Técnicos que já foram ídolos dentro de campo não têm garantias de emprego nos seus clubes
Demissões de Sylvinho e Renato Gaúcho e pressão sobre Rogério Ceni no São Paulo mostram que o passado de um atleta não o mantém no banco de reservas
Muito se fala sobre o eterno respeito que um ídolo tem no clube em que trouxe glórias. Às vezes ele é transformado em busto. Em outras, é reverenciado, das tribunas, pelo estádio inteiro. Assim que ele se torna técnico ou dirigente, porém, aquela trajetória inquestionável, construída em décadas, costuma ficar para trás quando os triunfos não chegam.
Um lado humano, muitas vezes oculto nos tempos de idolatria, surge de forma mais nítida, impulsionada por uma realidade que não olha para trás. Muitos ex-jogadores, como Sylvinho, que deixou o cargo em fevereiro último no Corinthians, foram demitidos de maneira implacável, após forte pressão da mesma torcida que um dia os aplaudiu.
Para o ex-técnico Emerson Leão, goleiro que foi um dos maiores nomes da história do Palmeiras, a grande vantagem de se contratar um ídolo é o fato de ele conhecer melhor os meandros e as necessidades do clube. Isso, no entanto, não tem sido bem aproveitado atualmente, segundo ele, em função da incompetência e da falta de envolvimento de muitos dirigentes.
"É preciso entender quem é quem na história, e isso não está ocorrendo. É a mesma lógica que tem levado clubes a só contratarem técnicos estrangeiros. É muito triste o que está acontecendo. O treinador brasileiro, mesmo ídolo, é o sexto na hierarquia no momento de opinar. Vale a palavra, em geral, de quem não entende, caso de muitos dirigentes que têm outros interesses", observa.
Leão considera que o futebol atual tem vivido de modismos que não mais levam em conta os serviços prestados pelos ídolos anteriormente. Eles acabam sentindo às vezes um peso ainda maior do que a média dos treinadores. "O treinador passou a ser o foco de tudo. Inclusive o que foi ídolo. Isso é resultado de um modismo que leva à falta de respeito e às vezes medo diante do ex-atleta que fez história. Na seleção brasileira isso ocorreu comigo. O presidente não entendia nada de futebol, só pensava no marketing e veja no que deu, está hoje com problemas na Justiça. É preciso passar o Brasil a limpo no futebol, mas é preciso fazer isso com quem conhece", ressalta.
Além de Leão, que dirigiu e foi demitido pelo Palmeiras em duas ocasiões (1989 e 2005-2006) e de Sylvinho, ex-lateral revelado nos anos 90 pelo Corinthians, há vários exemplos de ídolos que passaram por situação semelhante: Paulo Roberto Falcão (1993, 2011 e 2016, no Internacional), Basílio (1989, Corinthians), Toninho Cerezo (1999 e 2005, Atlético-MG), Paulo Baier (2021, Criciúma) e Daryo Pereira (em 1998, no São Paulo).
PAIXÃO E TRABALHO
Até mesmo Renato Gaúcho (Grêmio, 2010-2011,2013 e 2016-2021), apesar das conquistas ao comandar a equipe (Copa do Brasil em 2016 e Libertadores em 2017), e Rogério Ceni (São Paulo), que continua sendo pressionado no cargo, já experimentaram o gosto da demissão nestes mesmos clubes. Em dezembro último, Renato também perdeu o cargo no Flamengo, clube do qual foi ídolo no final dos anos 1980.
"Treinador que foi ídolo tem o trabalho dobrado. A responsabilidade é maior. Os técnicos Otto Glória e Osvaldo Brandão, com quem trabalhei como jogador, já me diziam isso. 'Quando o ídolo começa a trabalhar de técnico é outra coisa. Tudo o que fez não conta, a não ser que consiga resultado', me diziam. Torcedor coloca a paixão à frente da história. E os dirigentes não seguram", observa Basílio, autor do gol do título paulista corintiano de 1977, após quase 23 anos na fila.
Otto Glória e Brandão aconselhavam Basílio em uma época na qual ainda havia mais paciência em relação ao ídolo. Zagallo(campeão carioca em 1967 e 1968, no Botafogo-RJ), e Pepe, campeão paulista em 1978, no Santos), conseguiram sucesso e conquistaram títulos. Mas, a partir de sua própria experiência, Basílio considera que cabe ao treinador estar preparado para maiores cobranças.
"O ídolo que assume um cargo no clube precisa de equilíbrio para separar a paixão do trabalho. As cobranças são maiores. Quando os resultados não vêm, fica muito mais difícil porque há a impressão de que o ídolo tem que resolver sempre. E não é assim", observa.
A sua passagem como treinador do Corinthians, em 1989, exemplifica uma situação comum, na visão do ex-jogador e ex-técnico.
"Quando eu fui treinador, já cheguei preparado, com essa consciência. Havia recebido conselhos. O que aconteceu é que pessoas que nunca gostaram do clube acabaram me demitindo. Mas eu soube superar e continuar minha forte relação com o clube, sabendo separar e ver, do lado de fora, que a situação se resumiu a pessoas e não à instituição. Se você não percebe isso, acaba se decepcionando muito", destaca.
Ao comentar a demissão de Sylvinho, Basílio aponta outro fator que, ultimamente, tem aumentado a pressão sobre os ídolos que se tornam técnicos: a cobrança de parte da mídia, nos vários programas de TV que têm se multiplicado, com a presença de ex-jogadores. Eles acabam se tornando formadores de opinião e é preciso cuidado, segundo ele.
"O que mais chateou o Sylvinho foram críticas que ele considerou descabidas, feitas por alguns ex-jogadores. Falou-se sobre como ele se vestia e de questões pessoais. As críticas devem ser feitas ao trabalho, com profissionalismo. O lado pessoal tem que ficar de fora. Ele usa o que quiser no banco, seu trabalho é que tem que ser cobrado. Claro que essas opiniões acabaram influenciando o comportamento da torcida", afirma.
REDES SOCIAIS E TORCIDA
O fortalecimento das redes sociais também contribui para um imediatismo que antes não era tão presente. Os torcedores exigem que os resultados apareçam com uma velocidade proporcional à disseminação das notícias. Ou seja, quase que instantaneamente. Tal característica é descrita pelo estudante de Jornalismo, Adriano Riello Pereira, de 20 anos, frequentador assíduo dos jogos do Palmeiras.
Para Pereira, está ficando cada vez mais curto o prazo para o ídolo obter os resultados como treinador. As redes sociais, segundo ele, contribuem para diminuir a paciência dos torcedores.
Em média, 83% dos brasileiros consideram que as redes sociais têm muita influência sobre a opinião das pessoas, segundo a pesquisa nacional "Redes Sociais, Notícias Falsas e Privacidade na Internet", realizada em 2019 pelo DataSenado em parceria com as ouvidorias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
"Claro que é fundamental o torcedor respeitar o ídolo, afinal, ele, ídolo, nunca vai querer o mal do clube. Mas chega um ponto em que o torcedor começa a olhar mais para o resultado. E aí não importa mais quem esteja no banco. A história não se apaga, mas depois o técnico já não é mais o ídolo, é um profissional como outro qualquer. Essa paciência tem se esgotado cada vez mais rápido, com as informações correndo pelas redes sociais. Virou uma panela de pressão", diz Pereira.
Muitas vezes também, as torcidas organizadas, descontentes com a política do clube, utilizam os resultados ruins para pressionar o treinador. Não importa quem ele seja, segundo Wanda La Selva, membro da Gaviões da Fiel e irmã do fundador da torcida.
"A torcida tem razão em cobrar o ídolo. Ele precisa saber disso ao assumir. O Sylvinho, por exemplo, perdeu muito, não tinha pulso suficiente para lidar com os mais velhos. O problema dele foi esse. Aí não importa quem seja. Poderia ser o Sócrates ou o Rivellino que cairiam também. É um direito da torcida, é ela quem paga, vai ao campo, incentiva. A torcida do Corinthians não muda. A torcida sabe o que faz", ressalta.
PERFIL DOS JOGADORES
Mas se a essência da torcida não muda, o perfil do jogador mudou muito, segundo o ex-jogador Marquinhos Santos, grande ídolo do Avaí e atualmente diretor de futebol do clube. Com salários muito altos e todo um entorno de empresário e familiares, os jogadores em geral sentem-se impelidos a priorizar somente os interesses individuais. Neste sentido, o fato de o técnico ou o dirigente ter sido ídolo é o que menos importa para eles.
"Queira ou não, o técnico tem que ter o vestiário nas mãos. Os jogadores hoje cobram, querem explicações. Se às vezes você não coloca direito, se expressa mal, a situação respinga. É empresário ligando, é pai de jogador cobrando. O correto nestas situações é o clube fazer de tudo para defender o treinador", conta.
Marquinhos afirma que, como dirigente e ídolo, sente até mais dificuldades em representar o Avaí do que nos tempos em que jogou pelo clube. "Agora é mais difícil. O seu trabalho depende dos jogadores. Não sou eu mais quem joga. Entram aí vários fatores. Um jogador só pode ser considerado reforço depois que rende. E leva um tempo", explica Marquinhos.
Ele acrescenta ainda o lado financeiro dos jogadores, que passaram a ganhar salários muito maiores do que de décadas atrás. "Trabalho com jogadores que ganham o que nunca ganhei. Eles têm todo um entorno, são mais difíceis de lidar do que antes. Mas as cobranças não mudam. Já obtive conquistas pelo clube, mas tenho que matar um leão por dia. A cobrança vem como se a culpa fosse nossa. Se o jogador errou o gol a culpa não é minha. É como seu eu quisesse o mal do clube. Quando a vitória não vem, quem perde dinheiro é o clube, somos nós os maiores prejudicados. Mas torcedores xingam mesmo assim, se sentem com esse direito", completa, consciente de que a imagem de herói inabalável sempre foi uma ilusão. Que ficou no passado.