"Vale a pena viver", diz Lars Grael para goleiro Follmann
Iatista relata como foi seu processo de retorno ao esporte após ter amputada parte de sua perna, como o que ocorreu com goleiro da Chape
Em setembro de 1998, o iatista Lars Grael participava de uma regata em Vitória, no Espírito Santos, quando uma lancha invadiu a área de competição e o atingiu. Desde então, teve de aprender a conviver com a perda de uma perna. Quase 20 anos depois do acidente, ele sustenta que o apoio recebido de outras pessoas que sofreram traumas semelhantes foi fundamental para o “recomeço”. Por isso, num gesto de solidariedade, Lars projeta um encontro com o goleiro da Chapecoense, Jakson Follmann.
O jogador sobreviveu à queda do avião da Chape, em 29 de novembro, na Colômbia, e teve uma perna amputada. Tão logo houve o regresso ao Brasil de Follmann e de seus dois colegas de time, Neto e Alan Ruschel, a Chapecoense entrou em contato com Lars Grael e pediu que ele gravasse um vídeo para falar do seu exemplo de superação.
A ideia era exibi-lo para o trio e, além disso, servir como motivacional para a equipe Sub-20, que disputaria a Copa São Paulo de Futebol Júnior e se preparava para viajar.
Duas vezes medalhista olímpico (1988, em Seul, e 1996, em Atlanta), Lars Grael não hesitou em atender ao clube. Mais do que isso, ele passou a acompanhar, à distância, as etapas de recuperação de Follmann. Nesta entrevista ao Terra, o iatista conta os segredos da ‘volta por cima’ e alerta o goleiro, ao mesmo tempo que o encoraja. “Tempos difíceis virão. Não desanime. Você é jovem, tem toda uma vida pela frente. Vale a pena viver.”
Quase 20 anos depois do acidente, quem é o Lars Grael de hoje?
LG – Um pessoa dinâmica, com as alegrias e os percalços que todos têm. Vivendo de cabeça erguida e trabalhando (ele se dedica ao Projeto Grael, uma ONG com atividades sócio-educativas relacionadas à prática da vela). Claro que a vida mudou desde 1998. Mas não mudou para pior. O que existe, nesses casos, é uma readaptação à nova realidade, com novos desafios na vida pessoal e profissional.
Você abriu mão de usar uma prótese. Por quê?
LG – No período do acidente, em 1998, eu tive incompatibilidade com as ferramentas disponíveis e acabei desistindo delas. Preferi andar de muletas e me acostumei. Mais recentemente, com o avanço da medicina nessa área de amputação, chegaram ao mercado próteses mais modernas. Então, desde o ano passado, passei a utilizar uma. No meu dia a dia, eu intercalo momentos com a prótese e outros com as muletas.
O goleiro Follmann tem dado os primeiros passos com a ajuda dessa ‘perna mecânica’. Você tem acompanhado?
LG – Sim, à distância, pois não o conheço pessoalmente. Noto nele uma força de vontade muito grande e isso vai ajudá-lo muito. Ele tem que se manter firme porque tempos difíceis virão.
Como assim?
LG – Em casos como o do goleiro Follmann, há três etapas claras. A primeira é a da euforia por ter sobrevivido a uma tragédia, a um acidente gravíssimo. A segunda diz respeito à comoção geral e à atenção recebida da mídia, da família. A pessoa se sente valorizada com isso e, sem querer, o mundo ao seu redor já o trata como vencedor, como quem já deu sua demonstração de superação. Isso não é bem assim, leva tempo. Então, vem a terceira etapa, quando as coisas começam a se acomodar e a ficha cai. É a fase das incertezas, dos receios; muito difícil. Nesse momento é que se faz presente, com muito mais intensidade, a companhia de pessoas que já passaram pelo mesmo problema e que vão detalhar tudo que tem que ser feito para a vida continuar com dinamismo, otimismo e alegria.
Você vivenciou essas etapas?
LG – Sim, é uma regra. No meu caso, foi fundamental o apoio de quatro pessoas. O médico Marco Guedes, que fez nove das minhas dez cirurgias, e é referência da ortopedia do Brasil. Ele tinha um pé amputado. Outro foi um rapaz que era modelo, Ranimiro Lotufo, que num voo de parapente no Espírito Santo ficou preso na rede elétrica e perdeu uma perna por queimadura. Também sou muito grato ao Alcino Neto, vítima de um acidente de trem, no qual teve uma perna arrancada. E ainda assim voltou a fazer o que mais gostava – surfar. Não há como esquecer ainda a história de vida da enfermeira Cláudia Perini, responsável pela troca dos meus curativos no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ela usava uma prótese para substituir uma perna, perdida na luta contra um câncer no fêmur. Mas convivia bem com isso e levava uma vida como outras tantas pessoas, sempre alegre com suas atividades, e com o apoio que recebia dos filhos e do marido. Sem o apoio dessas quatro pessoas, não sei o que poderia acontecer.
Essa percepção, a partir da sua experiência, e acrescida do vídeo que você gravou a pedido da Chapecoense, lhe deixa com a vontade de ter um encontro com Follmann?
LG – Tenho sim, claro. Mas com muito cuidado, sem holofotes, pra não soar algo oportunista da minha parte. Todos nós ficamos comovidos com a tragédia do voo e nos alegramos com a recuperação dos sobreviventes. Esse rapaz, o Follmann, ele contagia pela forma como lida até agora com tudo o que aconteceu. Mas, como eu disse, vai ter o momento em que será fundamental para ele ter ao lado exemplos de quem passou pelo problema e está aí, na luta, olhando para a frente, se reinventando. Se ele sentir que precisa, estarei à disposição, a qualquer hora.
Você voltou a competir numa classe (Star) que permitia movimentos mesmo após a amputação. No caso do Follmann, que relação você acha que ele poderia ter com o esporte a partir de agora?
LG – Ele é jovem, se tiver paixão pelo esporte pode perfeitamente ser competitivo em atividades paralímpicas, até mesmo mudar do futebol para outra modalidade. Vai depender da vontade dele. Uma coisa ele tem que guardar sempre com ele: ‘vale a pena viver’. Se tiver dúvida disso, procure pessoas na mesma situação. Vai se surpreender, e se fortalecer muito.