Das estrelinhas na escola para o topo do mundo: Rebeca Andrade chega a Paris como protagonista
Espoleta e sorridente, ela traz desde a infância sinais do triunfo que viria pela frente, e carrega história de esforço pessoal e superação
Mais de 15 anos depois, parada no centro da quadra de piso de concreto da Escola Estadual Francisca de Assis Ferreira Novak, em Guarulhos (SP), a professora de Educação Física Elisa Maria Leal de Moraes lembra com emoção, como se fosse hoje, quando ela sentava na miniarquibancada, pintada na cor azul, para fazer a chamada.
- Essa reportagem faz parte da série Elas no Pódio, que conta histórias de seis mulheres (Rafaela Silva, Bia Ferreira, Ana Marcela Cunha, Rebeca Andrade, Viviane Lyra e Rayssa Leal) que são inspiração e referências nos seus respectivos esportes, além de representarem o Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris.
Esse era um dos momentos em que uma de suas alunas aproveitava para dar várias 'estrelinhas' ou ficar de cabeça para baixo apoiando o corpo com as mãos no chão. Os mesmos movimentos também se repetiam pelos longos corredores e pelas escadas da escola. A menina de 8 anos de idade era Rebeca Andrade ou 'Bebeca', como é chamada carinhosamente pela professora.
"Às vezes, eu dizia para ela: 'Ser humano anda com pezinhos, não com as mãos'. Porque ela andava a escola inteira assim. Os corredores viram muito a Rebeca de cabeça para baixo. Quando você via, ela estava dando 'estrelinhas', estava em parada de mão. É um talento que eu considero que nasceu com ela. Foi aprimorado, claro. Mas estava no olhar dela, na postura. A Rebeca já era uma campeã e ela superou muitas dificuldades para estar onde está", afirma a educadora de 58 anos.
Hoje, a menina, descrita pela professora como uma pessoa doce, participativa e um tanto espoleta na escola, se tornou uma grande mulher de 1,55 m de altura, talvez não na estatura, mas nas conquistas. As 'estrelinhas' continuam, mas os corredores do colégio foram substituídos pelos tablados das principais competições do mundo. Seja onde for, suas apresentações na ginástica atraem olhares, são sempre um espetáculo e uma emoção para quem assiste e vibra junto.
Aos 25 anos, Rebeca é dona de duas medalhas olímpicas --uma de ouro no salto e uma de prata no individual geral em Tóquio-2020--, é bicampeã mundial no salto (2021 e 2023), e campeã mundial individual geral (2022). Ela é inspiração para muitos jovens, é procurada por muitas marcas e patrocinadores. Ao todo, são acordos com 12 diferentes empresas. No final de maio, ganhou até sua própria versão da Barbie, na edição que exalta as estrelas do esporte.
A luta para chegar
Por trás de tantas conquistas, existe uma história de muito esforço pessoal, apoio e superação. No dia 8 de maio de 1999, Rebeca Rodrigues de Andrade chegava ao mundo. Mais precisamente em Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo. Ela é a caçula dos cinco filhos do primeiro casamento de dona Rosa Santos, 53 anos. Na época, a mãe de Rebeca trabalhava como empregada doméstica. Ela criou as crianças sozinha e, em seu segundo casamento, teve outros três filhos.
Nos primeiros anos de vida, Rebeca já dava indícios do que viria pela frente. Certo dia, a irmã de Rosa, Cida, levou Rebeca, com apenas 5 anos, ao ginásio Bonifácio Cardoso para fazer um teste em um projeto social de formação de novos ginastas. Local onde a tia -- por coincidência ou sorte do destino -- havia começado a trabalhar como cozinheira.
De cara, a menina encantou, lembra Mônica Barroso dos Anjos, 51 anos, professora de educação física e a primeira treinadora de Rebeca no ginásio e que ainda trabalha no local. "Tinha uma professora ao meu lado e eu falei: 'Acho que caiu aqui nas nossas mãos uma futura Daiane dos Santos'".
Rebeca recebeu o apelido de "Daianinha de Guarulhos". Mas, segundo a treinadora, essa "comparação" ocorreu somente naquele momento, como uma referência. Naquela época, Daiane do Santos era o principal nome da ginástica brasileira e mundial. Ela foi campeã mundial do solo em 2003, além de ter sido a primeira atleta a realizar um duplo twist carpado (Dos Santos I) e um duplo twist esticado (Dos Santos II) – com isso, os movimentos ganharam o nome da atleta.
"Na hora que eu bati o olho, vi que ela já era toda musculosa, aqueles braços fortes, aquelas perninhas. O formato do corpo, a musculatura." Após a pequena dar uma 'estrelinha', Mônica já percebeu que teria uma nova ginasta.
Para participar da turma principal do projeto, a menina mudou o horário do colégio e, logo, passou a frequentar as aulas. Desde o começo, Rebeca não parava quieta, sempre foi muito alegre e cheia de energia. A treinadora precisava chamar sua atenção com frequência. "Cadê a Rebeca?". E quando achava, lá estava ela pulando no tablado, dançando ou imitando as outras meninas do solo.
"Ela e a Milena [Theodoro, ex-ginasta da Seleção Brasileira], as duas tocavam o terror", brinca a professora. Quando Mônica diz isso, não era no sentido de bagunçar ou brigar, mas sempre de querer repetir movimentos que via as mais velhas fazendo. Rebeca parecia que já estava numa Olimpíada, relembra a treinadora.
"Ficava assistindo àquelas meninas e viajando. Você via que ela estava já, acho que, sonhando de um dia estar naquele tablado e ser a especial. A única ali no quadrado fazendo ginástica". Era ali que a pequena ginasta gastava toda a sua energia de criança.
7 km a pé para frequentar os treinos
Como a mãe trabalhava, o irmão Emerson ficou com a missão de levá-la ao ginásio. No início, Rosa dava o dinheiro da condução do trabalho para o garoto levar a caçula de ônibus para treinar, mas essa opção não durou por muito tempo. O jeito foi a dupla fazer o trajeto de quase 7 km a pé, o que levava cerca de duas horas de caminhada. Emerson deixava Rebeca nas aulas e ficava esperando do lado de fora.
Bom observador, ele já contou algumas vezes que resolveu montar uma bicicleta para tentar diminuir o cansaço da irmã. Para isso, vendeu papelão e ferro, e conseguiu juntar uma graninha.
Em entrevista ao Terra, Rebeca reconheceu a dificuldade pela falta de condições da família. "Era muito difícil, a parte financeira foi a mais difícil mesmo, porque o restante, o que eu precisava eu tinha: que era o amor da minha família, o incentivo, o apoio, a motivação deles todos os dias", afirma a ginasta, que faz questão de dedicar todas as conquistas aos familiares.
"A minha família foi o ponto crucial para que todas essas coisas pudessem acontecer, porque eu era muito nova e eu precisava deles para que me levassem para o ginásio, me incentivassem, me apoiassem. Eles me motivaram bastante e foram uma grande influência na minha vida para que eu continuasse nesse caminho."
Além do apoio familiar, Rebeca cita o amor pela ginástica, reconhecido logo nos primeiros contatos que teve com o esporte. "Eu acho que o que me motivou a fazer ginástica foi quando eu entrei e vi que eu levava jeito, que eu gostava daquilo. Eu tinha muita energia e era um local onde eu poderia gastar toda essa energia, sendo feliz, conhecendo outras pessoas e tudo mais", confessa Rebeca.
Nas primeiras aulas, a garota ainda era um pouco dura na flexibilidade, mas sempre forte e potente, como descreve Mônica. Mas, em pouco mais de um mês, ela já tinha se adaptado e alcançado o mesmo nível das demais meninas que estavam há quase um ano no projeto.
"Quando é muito talentosa, tem facilidade. Só de olhar, ela já quer fazer. Eu acho que ela até bagunçava mais também, porque chegou num certo momento, que, embora fosse novinha, já fazia tudo aquilo, e, às vezes, aquilo podia ficar meio entediante. Só que assim, na ginástica, a gente tem que correr atrás da limpeza, dos movimentos todos estendidos. E isso leva tempo, não é só fazer, e uma criança quer só fazer", explica a treinadora.
A professora de ginástica foi quem indicou a menina para a turma de Keli Kitaura, que, em 2010, a levou para Curitiba, e pouco depois para o Flamengo. Quando a atleta foi embora, Mônica passou a acompanhá-la nas competições pela TV e, vez ou outra, esbarra com ela enquanto arbitra as provas.
Uma delas, a mais marcante, virou até uma tatuagem. Na ocasião, Mônica foi árbitra voluntária do Pan-Americano de 2021, quando Rebeca conquistou a vaga olímpica e ganhou ouro no individual geral. Antes disso, a treinadora pediu: "Faz um salto bem lindo, com o pé na cabeça. Eu quero pôr o seu salto, porque você faz parte da minha história."
E não é que aconteceu? Ao presenciar a conquista, a árbitra sentiu vontade de largar o tablet que estava na mão e correr para abraçá-la, mas se conteve. "Ela ainda passou por mim, assim, dando risada. Querendo abraçar, esperando. Foi uma emoção enorme."
Uma aluna de cabeça para baixo, literalmente
Um período do dia da Rebeca era dedicado aos treinos na ginástica, já o outro era para a escola. E a professora Elisa, aquela lá do início da reportagem, garante que a garotinha era uma ótima aluna, "acima da média e comprometida", e que nunca deu trabalho na escola. "Mas eu já cheguei a ver o histórico escolar dela e me lembro que tem uma nota 9 em Educação Física. Como assim 9 para uma campeã mundial?", brinca a professora.
Elisa, que hoje não dá mais aulas no Novak, onde Rebeca estudou, retornou ao colégio só para conversar com a equipe do Terra e se emocionou várias vezes ao relembrar tantas histórias especiais que viveu ali. Ela conta que, de vez em quando, Rebeca dava algumas "escapadinhas para a quadra" para treinar.
Vestida com um uniforme azul escuro e com um clássico apito de uma professora de Educação Física pendurado no pescoço, ela levou dezenas de fotos de "Bebeca" na infância, além de um jornal que guarda desde 2009 com o rosto da menina, que tinha se apresentado no Campeonato Brasileiro de Ginástica Artística Infantil, realizado no Ginásio Municipal. Anos depois, esse jornal foi autografado pela ginasta, que escreveu: "Beijos para a melhor prô do mundo. Amo você."
As duas se conheceram na escola, em 2007, e a conexão foi imediata. "A gente tinha uma proximidade muito grande, porque ela treinava e vivia me mostrando. Ela falava: 'Eu aprendi a fazer isso'. Às vezes, eu também pedia para ela fazer demonstrações nas aulas", conta a professora. "Ela era uma criança sempre em movimento, muito ativa. Em todo 7 de Setembro, a gente fazia na escola um desfile, e ela fazia as 'estrelinhas', já ia na frente e eu me antecipava varrendo o chão para que a Rebeca não se machucasse com as pedrinhas."
Elisa viu de perto todo o esforço e dedicação de Rebeca com a ginástica e afirma que era uma rotina muito "puxada". A professora recorda, com os olhos cheios de lágrimas, um episódio em que viu a palma da mão da então menina machucada por causa dos treinos: "Ela estava em um churrasco na minha casa e eu fui colocar comida no prato dela. Nessa hora meu irmão falou: 'Você já está uma mocinha para estar ganhando comida na boca, você podia cortar [a carne]'. Rebeca então levantou as duas mãozinhas, ela estava com muitas bolhas, calos, já tinha saído a pele, e disse: 'Tio, eu não estou comendo porque estou machucada'. Doeu o meu coração. A gente vê agora brilhando, mas a escalada foi grande."
Superação desde cedo
É inegável que a história da campeã olímpica foi de muitas batalhas, sempre tendo o aporte de todo um time por trás, além da família. É o que diz Osmar Fagundes de Oliveira Júnior, de 58 anos, que também treinou Rebeca no Ginásio.
"Essa história, quando eu vejo a Rebeca, é uma história de muitas lutas. Claro que a Rebeca é uma exceção. A gente fala assim: 'Nossa, que história linda'. E hoje, eu vejo ela falando, se expressando, me dá orgulho, porque eu conheço a história, a mãe, que sempre esteve muito do lado dela. E a gente precisa estar aqui pra poder garantir que essas outras meninas consigam chegar também."
A exceção pode ser um grande exemplo e inspiração para outros atletas. Para Rebeca, "quando a gente ama aquilo que a gente está fazendo, as coisas valem a pena. A gente precisa lutar pelos nossos sonhos, pelos nossos objetivos. E sempre ser grato a tudo que está ao nosso redor, a todas as pessoas que nos ajudaram e que são nossa rede de apoio."
O exemplo e força da Rebeca tem nome
"Na minha infância, a pessoa que mais me inspirou foi a minha mãe", afirma Rebeca à reportagem. E quem acompanhou de perto essa relação entre filha e mãe foi Osania Oliveira, de 46 anos, amiga da família. Ela é dona da Pizzaria Universal, que está há 32 anos na Vila Barros, em Guarulhos (SP), e onde dona Rosa trabalhou por quase cinco anos.
Sentada em um banco no quintal de sua casa, que fica próxima ao Aeroporto de Guarulhos, Osania conta que não conhecia Rosa antes da pizzaria. Ela foi uma indicação de uma outra amiga para o trabalho e, logo após um teste, já quis contratá-la. "Era uma pessoa muito simpática."
Osania relembra que Rosa trabalhava até por volta de seis horas da tarde como empregada doméstica e, na sequência, já ia para a pizzaria, onde ficava até meia noite. Essa rotina se repetia de segunda a sexta-feira. Segundo a dona da pizzaria, a vida da amiga não era fácil, mas ela sempre andava com um "sorriso no rosto".
Desde quando a conheceu, Osania viu o quanto Rosa e os irmãos apoiavam Rebeca na ginástica. "Tudo é mérito dela e da família que está por trás. Era uma família muito humilde. A mãe dela trabalhava pelo arroz e feijão. Não tinha luxo. Um irmão cuidava do outro. Eram eles e eles."
Ali no longo quintal da casa, onde Osania e a reportagem estavam, ela diz que viu Rebeca "fazer muita ginástica", "pular de um lado para o outro". Quando tinha festa no local, a pequena ginasta, na época com 7 anos, era aguardada com ansiedade pelos convidados.
"As pessoas ficavam esperando por ela, ela fazia a Olimpíada dela. Era a atração da festa. Fora a educação, que era muita, a simpatia. Ela vinha aqui em casa mais nas festas, porque tinha uma vida muita corrida. No fim de semana, às vezes ela vinha também com os irmãozinhos para comer pizza."
"Ela era espoleta. Pulava o muro. Ela vinha na pizzaria e eu brincava: 'Não adianta Rosa, ela não fica quieta'. E sempre com aquele sorrisinho, com a voz dela de menininha meiga", acrescenta Osania. Nos eventos, o marido dela, inclusive, já falava que ia tirar muitas fotos e guardar "porque Rebeca ia virar uma estrela". Para Osania, a garota era diferente de outras crianças e já fazia tudo como uma profissional.
Até hoje, Osania tem uma amizade muito forte com dona Rosa e afirma que vê muitas características da amiga na Rebeca: "Ela é humilde. Quando ela vem para cá, ela vê a família, ela brinca, ela liga muito para mãe dela. Ela é bem família [...] Toda vez que eu vejo eles reunidos, dá vontade de chorar, por tudo o que vi eles passarem e o que eu vejo hoje. A Rosa tem uma família linda. É uma alegria que não cabe no meu peito ver isso."
Lesões que levaram a uma redescoberta
Em meio a essas duas décadas voltadas à ginástica, Rebeca também enfrentou diversas lesões e passou por três cirurgias no joelho, que atrapalharam a explosão da sua carreira. Em 2015, ela rompeu o ligamento cruzado do joelho direito. O mesmo aconteceu em 2017. Já em 2019, em um treino de pódio no Campeonato Brasileiro, dois saltos e meio, um mortal e mais uma pirueta fizeram com que a ginasta precisasse operar o joelho direito pela terceira vez.
Faltando apenas um ano para a Olimpíada de Tóquio, que acabou adiada para 2021 por causa da pandemia de covid-19, ela ainda não havia conquistado a classificação para os Jogos e chegou a pensar em desistir da ginástica. "Foram momentos muito difíceis para mim", relembra Rebeca.
A treinadora Mônica estava lá e encontrou com a atleta no hotel, logo após ter se machucado, e ela ainda não tinha certeza se era uma lesão. "Ela rompeu o ligamento. Só que ela não tinha certeza ainda. E ela estava no hotel, e a gente foi lá conversar com ela. Eu vi que ela evitava, porque ela sabe. O atleta que já passou por isso sabe. Ela já sabia que tinha alguma coisa errada ali."
Embora tenha sido um período muito desafiador, Rebeca conseguiu tirar algo benéfico da adversidade. "Eu comecei a ver as coisas com um lado mais positivo e foi muito bom para mim, eu me redescobri como atleta, como pessoa. Comecei a avaliar as coisas que eram importantes para mim: se eu realmente queria viver esse mundo da ginástica, se eu amava isso ainda, se eu acreditava que era possível, que eu era capaz e só faltava isso dentro de mim, porque todas as pessoas acreditavam que eu era capaz de realizar tudo o que eu queria, mas quando as coisas acontecem assim, a gente começa a duvidar um pouco."
"Em todas as fases, eu acreditei e continuei lutando e consegui conquistar tudo que eu sonhei na minha vida e, hoje, eu sou muito grata e satisfeita com tudo que eu tenho. Mas é isso, foram momentos bem difíceis, mas que fazem parte", completa a ginasta.
Rebeca retornou aos treinos quase um ano depois. O Pan de Ginástica no Rio de Janeiro, realizado em junho de 2021, era a sua última chance de garantir uma vaga na Olimpíada. Ela foi lá e brilhou. Conquistou o ouro e carimbou o passaporte para o Japão.
Baile de Favela fez todo mundo vibrar
Com um collant brilhante na cor rosa, o cabelo preso em um coque e ao som de uma ousada mistura de música erudita com o funk Baile de Favela, Rebeca foi aplaudida de pé em Tóquio na disputa do individual geral e conquistou um feito inédito: a primeira medalha do Brasil na ginástica artística feminina na história da Olimpíada. Na ocasião, em 29 de julho de 2021, ela ficou com a prata.
Três dias depois, em 1º de agosto daquele ano, ela fez história novamente. Foi ouro no salto e fez o hino do Brasil tocar pela primeira vez na disputa olímpica da ginástica feminina. Além disso, com 22 anos, Rebeca se tornou a primeira brasileira a ganhar duas medalhas em uma mesma edição de Olimpíada.
Durante a transmissão da prata de Rebeca em Tóquio, a ex-ginasta Daiane dos Santos chorou. "Durante muito tempo, as pessoas disseram que as pessoas negras não poderiam praticar alguns esportes. E a gente vê hoje, a primeira medalha [da ginástica olímpica feminina brasileira] é de uma menina negra. Tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso", afirmou a campeã mundial durante a transmissão da Globo.
No esporte, Daiane dos Santos sempre foi a inspiração de Rebeca, e ela reafirma isso ao Terra. "Foi com quem eu me identifiquei". Rebeca chegou a conhecer Daiane ainda em 2009, no auge dos seus 10 anos, lá no ginásio em Guarulhos, onde treinaram juntas.
Atletas não são 'robôs'
Para lidar com o período exaustivo de treinamento, com as lesões, com as expectativas de todo um País por medalhas, para conciliar a vida de atleta com a vida pessoal, entre outras questões, Rebeca aposta no acompanhamento psicológico. "A terapia me ajuda muito com a questão da ansiedade, eu sou ansiosa para coisas específicas. Por exemplo, quando está no dia da competição, eu me sinto um pouco mais ansiosa, então eu converso com a minha mãe, com a minha psicóloga. [...] Com certeza, ajuda nos meus resultados", revela.
Desde os 13 anos, ela é assistida pela psicóloga Aline Wolff, de 41 anos. Enquanto a maioria das pessoas vai ao consultório, é a psicóloga quem geralmente entra na rotina da ginasta. "É uma troca dentro de um setting diferente. O trabalho com o atleta acontece no local de treino, no local de competição", detalha a profissional à reportagem no seu consultório em Ipanema, no Rio de Janeiro.
Mais que uma promessa de medalha para o Brasil, Rebeca é uma jovem adulta com sonhos e particularidades. Isso é o que Aline quer que ela sempre se lembre. "Estar num esporte de alto rendimento é como qualquer outro trabalho. Entendemos os atletas como super heróis, mas são apenas pessoas. [...] A Rebeca é uma pessoa. Ela tem esse espaço de olhar pra ela, de se conhecer. Não é um trabalho direcionado para desempenhar bem, é para ela se entender."
A fala de Aline vai contra uma visão de que atletas de alto rendimento são "robôs", treinados para não expressarem sentimentos. A própria Rebeca já ganhou o título de "atleta que não chora". No Mundial da Bélgica, no ano passado, foi ela quem consolou um repórter quando ele chorou por sua medalha de prata.
O momento viralizou, mas Aline reforça que nunca trabalharia para reprimir as emoções da atleta. "Não tem problema chorar! Mas talvez naquele momento em que ela está inteira, que está fazendo o que tem que fazer, esse choro não venha. Isso não significa que ela não se emociona, é só uma característica."
Entre treinos, diversão e estudos
O dia a dia da medalhista olímpica continua "puxado" e cheio de giros, saltos e 'estrelinhas'. Rebeca treina de seis a sete horas por dia. Já nas horas livres, é quando ela tenta encaixar outras coisas, como consulta médica, terapia, levar os cachorros para creche, ir ao dentista. "No fim de semana, eu consigo descansar um pouco mais."
A ginasta se considera uma pessoa mais "caseira" atualmente, mas afirma que, quando tem vontade de sair, ela sai. "São importantes esses momentos de lazer para a cabeça, a ginástica não vai durar para sempre e eu tenho certeza que as sensações que eu sinto quando estou dentro de uma competição, vão ser muito difíceis de eu me sentir em outro lugar. Eu fico muito feliz dentro do ginásio, dentro das competições, assim como eu fico muito feliz quando estou assistindo a um show de um artista que eu gosto muito ou curtindo com os meus amigos. É bom viver essas duas coisas", reflete Rebeca.
Apesar de uma rotina intensa, Rebeca também reserva um tempinho para os estudos. Ela cursa Psicologia em uma faculdade particular. "Não é fácil [conciliar os estudos com as competições e treinos], mas a faculdade está sendo ótima comigo. Eles entendem muito a rotina do atleta, a gente consegue conversar para montar um planejamento que faça sentido e para que eu consiga concluir o ano. [...] Eu não vejo a hora de me formar, vai ser sensacional", comenta a ginasta.
'Representar o Brasil da melhor maneira que eu puder'
Em 2023, o desempenho de Rebeca no solo, no salto, na trave, nas barras assimétricas, em equipe e no individual geral foi alto. No Mundial da Antuérpia, na Bélgica, foram cinco medalhas: um ouro, três prata e um bronze, e mais quatro pódios nos Jogos Pan-Americanos de Santiago, no Chile, com dois ouros e duas pratas. E este ano é a vez de encarar os Jogos Olímpicos de Paris. O que Rebeca deseja é estar "feliz e saudável" para o evento máximo do esporte.
"Assim como eu já estou hoje em dia, mas continuar para chegar na competição e fazer o meu melhor. Na minha cabeça, eu sei que eu não posso fazer nada de diferente, o que eu estiver fazendo lá naquele momento vai ser o meu máximo, e isso já me conforta bastante. Eu quero fazer o melhor, representar o Brasil da melhor maneira que eu puder", afirma.
No ano passado, a maior vencedora da história da ginástica, a norte-americana Simone Biles fez um gesto durante o Mundial na Antuérpia que chamou a atenção do mundo todo. Em uma das cerimônias de premiação, ela fez o movimento com as mãos como estivesse passando a coroa para a cabeça de Rebeca. A brasileira, no entanto, assegura que não se sente pressionada por isso.
"É algo que para mim foi muito genuíno da parte dela, foi de coração mesmo, e eu não me comparo com ela porque somos pessoas muito diferentes. A Simone é excepcional, ela é a melhor ginasta do mundo. Eu a tenho como uma grande inspiração de força, não só física, mas mental também, principalmente depois do que ela passou lá em Tóquio [a norte-americana desistiu das finais para priorizar a saúde mental] [...] Ela foi grandiosa e mostrou que os atletas não são robôs, e que a gente passa por situações que também são difíceis, assim como qualquer outro ser humano."
Agora, entre 26 de julho e 11 de agosto de 2024, mais um capítulo de toda essa história tão brilhante quanto as medalhas de Rebeca pode ser escrito em Paris, na França. E estaremos acompanhando de pertinho, seja presencialmente ou pela TV, a eterna garotinha das 'estrelinhas' em Guarulhos que ganhou o mundo todo com o seu talento.
*Com colaboração de Tiago Ortaet
**Coordenação e edição de Aline Küller