Deficiência não nos define e nem nos limita, diz Daniel Dias
Após adeus à natação, maior atleta paralímpico do Brasil foca em trabalho do seu instituto e em ser "ponte para as crianças" com deficiência
Maior medalhista paralímpico da história do Brasil, Daniel Dias encerrou a sua consagrada carreira nas piscinas nos Jogos de Tóquio, onde conquistou três bronzes e passou a ostentar incríveis 27 pódios, sendo 14 deles de ouro, em Paralimpíadas. E agora, aos 33 anos, o recém-aposentado nadador não pensa neste momento em se tornar um técnico para a natação do País ou por exemplo um dirigente de peso do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB).
Em entrevista exclusiva ao Terra, falando diretamente da capital japonesa, onde permanece ainda até domingo, a lenda paralímpica brasileira falou sobre os próximos planos para a sua vida e revelou que a sua principal prioridade atual é focar no trabalho realizado pelo Instituto Daniel Dias. Fundada em 2014, a instituição tem a missão principal de promover a inclusão social e formar cidadãos por meio do esporte, além de ser um órgão transformador por meio da prática esportiva.
"Quero poder me dedicar ao meu instituto. Será uma grande realização poder ser a ponte para as crianças, de oferecer oportunidades, porque eu acredito que todos podem ser campeões na vida", revelou Daniel Dias, que tem o sonho de construir uma sede para o instituto.
Ainda sem um local próprio e com um canal aberto em seu site para o recebimento de doações que ajudam a torná-lo sustentável, o órgão vinha utilizando um espaço cedido pela prefeitura de Bragança Paulista (SP) para poder exercer o seu papel, mas precisou interromper suas atividades por causa da pandemia da covid-19.
Medalhista de bronze nas provas do revezamento 4x50m livre misto até 20 pontos, dos 100m e dos 200m livre da classe S5 (para pessoas com má-formação congênita ou membros amputados) nos Jogos Paralímpicos de Tóquio, ele também garantiu ao Terra que não pensa em adiar a sua aposentadoria após subir no pódio por três vezes nesta sua última competição.
Dono ainda de 40 medalhas em seis Mundiais, sendo 31 ouros, sete pratas e dois bronzes, além de 33 pódios dourados em Jogos Parapan-americanos, Daniel também diz ver hoje um "crescimento bem sólido" do Brasil no esporte paralímpico. Confira abaixo a entrevista exclusiva com o nadador, que durante a sua carreira ainda chegou a ser eleito por três oportunidades, em 2009, 2012 e 2016, o melhor atleta com deficiência do mundo no Prêmio Laureus, popularmente conhecido como o 'Oscar do Esporte'.
Daniel, como maior campeão paralímpico brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos, quais você acha que são os principais legados que você deixa para o esporte nacional e para as pessoas em geral pela sua história como nadador?
Eu acredito que o exemplo da capacidade das pessoas com deficiência, de que podemos realizar nossos sonhos e que não há o impossível. Que a deficiência não nos define e nem nos limita. Gostaria de que meu legado fosse relacionado à maior visibilidade do esporte paralímpico, que as pessoas conhecessem mais, valorizassem mais os atletas brasileiros, e quem sabe assim descobrimos mais pessoas. Foi assim comigo, e eu acredito no poder transformador do esporte.
Como exemplo de superação e sinônimo de atleta vencedor, você deixará Tóquio com novas medalhas paralímpicas na bagagem e ainda mostrando que poderia seguir competindo em alto nível. O seu bom desempenho em Tóquio o faz pensar na possibilidade de rever a decisão de se aposentar?
Não, a decisão de aposentar já estava muito clara para mim e há muito tempo, o desempenho de Tóquio não ia me abalar. Eu realmente senti que estava no fim do meu ciclo como atleta, e cada vez mais eu estava mais disposto a contribuir para o esporte fora das piscinas. O chamado estava ficando mais forte.
Há 4 anos, durante o Mundial paralímpico de natação no México, você disse que um dos segredos do seu sucesso é o de que “você escolheu ser feliz”, mesmo com todas as adversidades que enfrentou. E fora da piscinas, ao deixar de ser um atleta, qual é o caminho que você planeja trilhar para manter esse “caminho da felicidade”?
Eu fiz esta escolha de ser feliz ainda na infância e é para a vida toda. Adotei há pouco tempo o slogan 'sorria pra vida' como uma marca registrada minha, porque acredito fielmente no sentido desta frase. Buscar esta felicidade fez parte do processo de decisão da aposentadoria, a falta que eu estava sentido de viver com os meus filhos, de ter nossos momentos, de vê-los crescerem. Eles me fazem feliz. O esporte me trouxe muita felicidade, e quando percebi que contribuir politicamente para o desenvolvimento do esporte também seria uma alternativa ficou tudo mais claro.
Como nadador, você conquistou inúmeros feitos, colecionou medalhas em Paralimpíadas, Mundiais, Parapans etc. Mas seguiu se motivando pra sempre buscar algo mais. Agora, olhando para trás ao analisar sua trajetória, há algum objetivo que você não conseguiu atingir e gostaria de ter alcançado?
Eu acho que não. Eu nunca imaginei chegar aonde cheguei. Nem se eu tivesse desenhado um plano há dezesseis anos atrás teria saído tão perfeito assim. Estou muito satisfeito com a minha trajetória.
Você já disse que agora pretende focar na construção da sede do Instituto Daniel Dias. Ao gerir e ser a grande referência desse instituto que carrega o seu nome e certamente inspirará muitos atletas paralímpicos, como você se imagina atuando para transformar a vida destas pessoas?
Quero poder me dedicar ao meu instituto. Será uma grande realização poder ser a ponte para as crianças, de oferecer oportunidades, porque eu acredito que todos podem ser campeões na vida. O esporte, além de ensinar grandes valores, contribui para a saúde, bem-estar, autoestima e, principalmente, a inclusão.
Ao parar de competir, inevitavelmente você passará a ser visto como um nome forte para liderar o esporte paralímpico brasileiro, como ocorre hoje com o Mizael Conrado, presidente do CPB e ex-jogador de futebol de 5 do Brasil. Você se imagina no futuro no papel de dirigente do CPB ou pensa em atuar mais diretamente com os atletas, como um técnico de natação, por exemplo?
Na verdade, não. Não é o meu desejo atual. Quero poder contribuir com o esporte brasileiro e mundial, mas não necessariamente como dirigente. O Instituto Daniel Dias é a minha prioridade.
O Brasil voltou a provar, em Tóquio, ser uma potência paralímpica, pois desde Pequim-2008 se mantém no top 10 da Paralimpíada, posto que ocupa hoje no Japão. Como você avalia o desempenho do Brasil como um todo nesta edição dos Jogos? E como você vê o Brasil hoje em relação às outras potências paralímpicas?
O Brasil sempre foi muito forte e os números não negam. Avalio um crescimento bem sólido, pois as medalhas hoje são distribuídas nas mais diversas modalidades. Isso é um ótimo sinal. Olhando especificamente para a natação, nós conhecemos novos medalhistas em Tóquio, atletas jovens, estreantes, então é possível ver que a base está sendo feita.
Como você avalia o cenário estrutural do esporte paralímpico brasileiro atualmente? O apoio que o atleta tem hoje ainda é pequeno ou melhorou em relação ao passado recente? Os Jogos do Rio-2016 mudaram um pouco este cenário?
Depois dos Jogos Paralímpicos do Rio-2016 melhorou sim, ainda bem longe do ideal, mas vejo uma movimentação maior no mercado e na imprensa. Felizmente, tenho grandes parceiros e há anos, mas sei que esta não é a grande realidade dos atletas paralímpicos. Espero que os empresários olhem com mais carinho para o Movimento Paralímpico como um todo.
Quando se fala em Paralimpíada, é impossível não comentar também sobre o preconceito que muitas vezes sofre o atleta paralímpico. Você acha que esse preconceito ainda é muito presente ou hoje este cenário ficou para trás?
Ainda existe, mas bem menos. Vejo que está mais em pauta a questão da diversidade e acessibilidade. As pessoas parecem mais abertas às causas. Mais ainda falta informação, muitos mitos ainda existem. Dúvidas de como se referir à pessoa com deficiência por exemplo, qual o termo adequado.
Mesmo tendo se tornado um atleta altamente consagrado e conhecido, você ainda é vítima de preconceito como um dia já foi enquanto estudante?
Acredito que eu sofra menos no momento, as conquistas ajudaram a quebrar um pouco disso, porque elas refletem a capacidade que temos de realizar grandes feitos.
Quais foram para você os principais impactos por ter vencido o Prêmio Laureus por três vezes? O feito ajudou a desenvolver a sua carreira ou ampliou os seus horizontes profissionais de alguma forma?
O Prêmio Laureus é uma grande honra. É um reconhecimento incrível e me marcou muito. Acho que o prêmio ampliou minha visibilidade mundialmente e consequentemente o esporte paralímpico brasileiro.
Ao encerrar a sua consagrada carreira paralímpica e também como exemplo de superação pessoal, qual mensagem você gostaria de deixar para as pessoas e para os atletas que buscam ter sucesso na vida e no esporte?
Eu incentivo muito a prática esportiva. Aviso de que não é uma carreira fácil, existem muitos obstáculos e dificuldades, será preciso abdicar de muitas coisas e ser muito disciplinado. Que vai ter muito, muito, muito treino, mas com dedicação e foco, você conseguirá alcançar seus objetivos e sonhos. E no final, vai valer muito a pena.