Análise: Hazel Sky é nova vida para a Coffee Addict Studio
Jogo do estúdio catarinense traz um protagonista entre a engenharia de Gideon e a arte dos revolucionários
Hazel Sky é um jogo de aventura e exploração feito pela Coffee Addict Studio, de Araranguá, cidadezinha do interior de Santa Catarina. O jogo foi pubicado pela Neon Doctrine e está disponível para PC (Steam e Epic), PlayStation, Xbox e Nintendo Switch.
Uma das coisas que me ajudam a manter o foco durante tarefas como essa, de escrever, é a música. Pra mim o que mais funciona são playlists imensas com música ambiente synthwave/cyberpunk, tem algo dos sintetizadores que diminui o ritmo da minha cabeça distraída. Em Hazel Sky a música (e a arte) é antagonista, sendo demonizada pela classe cinza dos engenheiros que dominam a cidade voadora Gideon. E Shane, o protagonista do jogo, viaja em dúvida entre dois mundos: sua linhagem familiar de engenheiros e uma mentira artística que vai mudar sua percepção de si mesmo e da sociedade.
E se no enredo a música é vilã, no jogo em si ela é a protagonista completa. O estúdio catarinense usou notas de violão como efeito sonoro dos menus de Hazel Sky e se preocupou em representar com exatidão cada acorde feito por Shane, além de ter feito músicas originais que podem ser encontradas em partituras escondidas pelas ilhas e nos entregam uma pequena apresentação do protagonista.
Eu quero mesmo é ver Gideon queimar
Hazel Sky começa pelo fim e mostra uma antecipação de Gideon, a cidade voadora, sendo destruída durante a revolta dos Pincéis Vermelhos, o grupo libertário artístico que luta contra o sistema opressor imposto pelos engenheiros exáticos da cidade. Confesso que essa parte me seduziu desde o começo, eu queria mesmo é que Gideon caísse. Que se fodam os engenheiros e bora Pincéis Vermelhos.
Colocada essa previsão de fim de tudo, Shane Casey começa o jogo sendo levado por seu pai para a ilha em que os jovens, e tradicionalmente os jovens da sua família, são testados para serem engenheiros valorosos ou serem abandonados para morrer ali mesmo (tranquilo, pô). São três ilhas diferentes que testam a capacidade do jogador com tarefas simples, mas engenhosas: construir uma máquina voadora decente o suficiente pra te levar até Gideon sem explodir, desfazer, cair no oceano, quebrar ou algo do tipo.
O primeiro teste é coletar tábuas e tecidos para reparar um pequeno avião de madeira e usar carvão para iniciar essa espécie de planador. Tudo isso pra dar de cara no chão da segunda ilha. E nela as coisas evoluem um pouco, obrigando você a usar cogumelos alucinógenos, desvendar senhas e melhorar seu grampeador tunado pra conseguir soldar as partes quebradas do balão-dirigível remendado que te leva pra área final.
E essa área final é o grande encontro de todas as mecânicas até então. Você precisa pilotar um trem ao redor da ilha para encontrar e juntar as asas e o motor do avião que vai enfim te levar pra Gideon. E esse meio de caminho envolve atrair um bisão com abóboras para ele funcionar como um contrapeso em uma plataforma, alimentar outro bando de bisões para eles liberarem o trilho, realizar um culto místico pra liberar uma bruxa, e até arrumar uma estação de petróleo pra colocar combustível no avião.
Profecias, cultos e profundidade de mundo
A progressão é muito suave e as mecânicas são simplistas, mas isso se deve principalmente ao fato de que o foco de Hazel Sky é na construção de mundo. Entre essas três ilhas rolam muitos colecionáveis diferentes, de dedos decepados e chaveiros legais até chaves e baús secretos. Além de muitos arquivos e livros que contam a história desse mundo. E contam mesmo, com passagens sobre a fundação e o estranho fundador de Gideon e sobre a revolução dos Pincéis Vermelho, e também profecias místicas, histórias bizarras e um culto que acredita na figura da Bruxa Marrom.
Também encontramos muitos relatos de familiares anteriores a Shane que passaram pelos testes, como seu pai, que vai mudando seu discurso a cada fase passada pelo filho, e um primo que falhou e morreu na ilha e aconselha ao novato a largar o ofício dos Casey e fugir da ilha. Além de rádios espalhadas que contam ao vivo o andar da revolução, noticiando sobre a iminente queda de Gideon e dando um senso de urgência cada vez maior para Shane.
E o que embala essa exploração intensa e a descoberta de muitos segredos é a belíssima ambientação de Hazel Sky. O formato contido dos mapas permitiu que o pequeno time da Coffee Addict focasse nos mínimos detalhes de cada canto das ilhas, com oficinas abandonadas, torres de comunicação quebradas e navios naufragados. A maioria dos objetos em cena conta alguma história, seja de um corpo já apodrecido de algum aspirante a engenheiro que não aguentou o teste ou de algum membro do Culto da Lua que passou pela ilha e deixou suas mensagens enigmáticas a respeito da Bruxa Marrom.
Mas o ponto central é a amizade do protagonista com Erin, uma garota que também está passando pelo teste de engenheiros e conversa constantemente conosco através de um rádio velho. É a Erin que cabe o papel de questionar o teste, a estrutura da cidade e essa guerra contra as artes e os artistas, mesmo sendo Shane quem tem proximidade com a música, mostrando talento e facilidade pra tocar violão.
Erin é aquela voz da consciência pesando na cabeça de Shane sobre sua subserviência e fé cega no sistema e alimentando a luta interna do garoto entre sua veia artística e o legado de sua família.
Entre a chave de fenda e o violão
Eu passei um tempo um pouco insatisfeito com o arco final de Hazel Sky. Achei que faltava profundidade no final de Shane, mas depois de reescrever essa parte do texto várias vezes eu entendi como a Coffee Addict demonstrou de fato a dualidade do garoto, que no fim cagou pra sua verdadeira origem e escolheu salvar seu pai (sem muito mais spoilers). Ainda acho que a revelação final poderia ter ganhado um pouco mais de relevância na tela, com o próprio Shane indagando mais sobre isso, mas entendo que o silêncio também diz muito.
O jogo nos entrega visuais excelentes e uma exploração muito densa de um mundo misterioso. Os diálogos entre Erin e Shane não são os mais naturais possíveis, mas isso não me tirou do foco do jogo. O ponto mais negativo que sofri foi com a câmera em terceira pessoa. Infelizmente acabei sentindo enjoo em boa parte das três horas de gameplay, o que impediu que eu fizesse jornadas muito longas com o controle.
Hazel Sky é um ótimo jogo de exploração. Começa como uma aventura de um herdeiro, passa por uma revolução das classes oprimidas e pode terminar até num sacrifício cabalístico. Não esperava encontrar o final secreto com o Culto da Lua, e isso me surpreendeu muito positivamente.
Depois do difícil lançamento de seu primeiro jogo, Blade and Bones, espero que Hazel seja o trampolim que a Coffee Addict precisava para embalar seus próximos projetos. Ansioso pra ver o que esse pequeno time do interior de Santa Catarina ainda pode fazer.
Simbolicamente, as análises controlísticas não terão notas. Se contentem com esse novíssimo modelo de classificação diferenciado e sem sentido baseado apenas no meu gosto pessoal: