Desenvolvedoras criam games com narrativas afro-brasileiras
Lideradas por mulheres negras, empresas focam em gerar representatividade racial e de gênero através de jogos educativos
Mesmo vivendo em uma era de maior acesso às tecnologias, os problemas sociais continuam segregando os espaços de entretenimento. É o caso da indústria de games que, ao redor do mundo, ainda caminha a passos lentos quando o assunto é diversidade, seja ela racial ou de gênero. No entanto, a insatisfação com essa realidade motivou desenvolvedoras independentes a produzirem jogos com narrativas focadas nas culturas afro-brasileiras.
A Game e Arte e a Sue The Real são exemplos reconhecidos neste cenário. Situadas em São Paulo, as duas empresas são lideradas por mulheres negras, que atuam no setor com o objetivo de desenvolver jogos com impacto social.
“A indústria de jogos não está isolada num contexto aleatório. Toda indústria está situada na sociedade. E no caso da indústria de jogos, ela vem de um espaço onde a tecnologia é tomada por homens brancos e heterossexuais. É difícil que essas pessoas, neste lugar de privilégio, consigam produzir e enxergar o mercado como algo para todos”, contou Tainá Felix, cofundadora da Game e Arte.
A desenvolvedora surgiu em 2009 como a ONG “Jogos pela Educação”, criada pelo companheiro de Tainá, Jaderson Souza. A organização tinha o objetivo de realizar experiências educativas por meio dos games. Em 2017, com o lançamento de “A Nova Califórnia”, jogo baseado no conto humorístico de Lima Barreto, a Game e Arte se firmou também como uma produtora.
“Pensando em ter um espaço de fala através de uma mídia que a gente tanto gosta foi que a gente começou a criar jogos também. Começou com o jogo a “A Nova Califórnia”, que é uma adaptação do livro, que está em domínio público, justamente por ser de um dos autores pretos mais relevantes da literatura brasileira”, contou Jaderson.
Angola Janga
Desenvolvido pela Sue The Real, “Angola Janga: Picada dos Sonhos” mistura aventura e puzzles, em uma narrativa que conta a história de Soares e Andala para encontrar o caminho até o Quilombo de Palmares.
O jogo é baseado no livro HQ “Angola Janga: Uma História de Palmares”, vencedor do Troféu HQ Mix de "melhor edição especial nacional" e o Prêmio Jabuti de "melhor história em quadrinhos" em 2018, de Marcelo D'Salete.
O sucesso do Angola Janga ultrapassou as fronteiras e ganhou destaque na África, principalmente em Moçambique. A repercussão foi tão positiva que fez a Sue The Real entrar na lista de 100 desenvolvedores negros mais relevantes do mundo.
“Esse jogo praticamente tudo na gente. Quando fomos fazer a concepção do Angola Janga, sabíamos que na nossa mão tinha uma responsabilidade muito grande, principalmente porque o trabalho do Marcelo D’Salete teve um trabalho de mais de dez anos para construir o livro”, disse Raquel Motta, CEO da Sue The Real.
“Foi preciso muita pesquisa e muito estudo para produzir o jogo e com isso a gente acabou aprendendo mais sobre a nossa própria história, sobre as pautas negras. Foi muito importante para nós como pessoas”, concluiu.
“Lugar de Jogo”
O envolvimento de Tainá e Jaderson com os games educativos, citados no início da reportagem, renderam uma recente parceria com o Sesc São Paulo para o projeto “Lugar de Jogo”. Os dois foram responsáveis pela curadoria dos games que entrarão no Sesc Digital.
Os jogos desenvolvidos a partir de padrões não-hegemônicos da indústria estimulam o espaço de fala e escuta à diversidade, além do protagonismo da representatividade popular.
“A nossa ideia é ir contra a corrente mesmo. A gente acaba falando muito do jogo em si, mas não está falando de quem está desenvolvendo. E essa é a parte mais importante”, acrescentou.
A programação conta com um ciclo de debates, que vai até 1º de dezembro. Nas plataformas do Sesc Digital, quatro jogos selecionados por mês estarão disponíveis para download. Todas as atividades são gratuitas e em ambiente virtual.