Homem branco hétero domina indústria de games. Dá pra mudar?
Indústria de videogames carece de negros, mulheres e comunidade LGBT+; falta de representatividade transparece nos games
Jogos de videogame são ferramentas ousadas e interativas para se contar uma história. As mentes criativas por trás desses games planejam e roteirizam todas as emoções que você, jogador, deve sentir, criando sentimentos de conexão e empatia com os personagens exibidos na tela.
Porém, essas mentes criativas que estão dentro dos estúdios são muito parecidas. Pesquisas indicam que é possível traçar um padrão do colaborador médio de uma desenvolvedora de jogos: branco, homem e heterossexual.
No Brasil, 20,7% dos funcionários de produtoras são mulheres, e apenas 10% do quadro se considera afrodescendente, contrastando com a própria população brasileira, em que 51% são do gênero feminino e 56% autodeclarada negra ou parda. Nos Estados Unidos, a título de comparação, a participação dos negros na indústria de games também é pequena, chega a meros 3%, mas lá eles são 13,8% da população e não mais da metade como no Brasil.
Quando traçamos uma intersecção entre gênero e raça, percebe-se a pouca participação de mulheres afrodescendentes na indústria. Apenas oito desenvolvedoras declararam ter sócias negras. Ou seja, a hegemonia branca e masculina está presente tanto entre lideranças quanto entre seus subordinados. Os estúdios brasileiros apresentam números ainda mais baixos quando tratam de indígenas e transgêneros: 0,9% e 0,4% respectivamente.
Os dados são do II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, publicado em 2018. A pesquisa, coletada a partir de informações dos recursos humanos das empresas, só não contempla dados de orientação sexual porque a informação é sigilosa
“Quando você quer contratar alguém, é fácil procurar por pessoas iguais a você, que foram para a mesma faculdade e tiveram as mesmas experiências”, diz Camila Malaman, diretora e produtora da Webcore Games e integrante do comitê de diversidade da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames). “As mulheres começaram a se incomodar e a fazer um ‘teste do pescoço’ nos eventos”, explica. O "teste do pescoço" é o exercício de olhar ao redor e se perguntar se o seu entorno tem diversidade, representatividade.
O comitê surgiu no fim de 2018 a fim de promover debates sobre o assunto entre empresas filiadas. A iniciativa também parabeniza empresas através de selos de diversidade e pode nos dar um panorama sobre o cenário: em 2019, entre 115 associados, 14 estúdios se submeteram à avaliação. Eles obtiveram pelo menos dois dos três disponíveis: gênero, raça e comunidade LGBTQI+.
Ter pessoas com vivências e perfis de raça, gênero e orientação sexual semelhantes reflete também no produto final. Façamos um teste aqui: você já notou alguma semelhança entre seus jogos preferidos? Consideremos alguns dos jogos mais premiados dos últimos anos: Death Stranding, God of War, The Witcher 3, The Last of Us, Red Dead Redemption… todos têm protagonistas homens, brancos e heteronormativos.
Vale ressaltar que a presença de protagonistas mulheres é um movimento recente. Embora personagens como Lara Croft (Tomb Raider) ou Jill Valentine (Resident Evil) tenham marcado gerações, a representatividade feminina ainda é bem inferior se comparado aos lançamentos com protagonistas homens.
A própria Sony, por exemplo, não queria que a capa de The Last of Us desse destaque à Ellie, mas sim a Joel. O pedido foi recusado pela Naughty Dog. Sete anos depois, a continuação do game foca somente no rosto enraivecido de Ellie.
The Last of Us Part II também sofreu ataques da comunidade gamer, que a apelidou de “The Lesbian of Us” — parte da narrativa se concentra na relação amorosa de Ellie com Dina. No Metacritic, página que reúne avaliações da imprensa e dos usuários, a média das avaliações da comunidade está em 4.9, contra 94 de veículos profissionais.
Brancos no microfone
Um reflexo da hegemonia branca na indústria foi o BIG Festival, maior evento de games independentes da América Latina, que ocorreu entre 22 e 26 de junho em um formato totalmente online, intitulado BIG Digital. O festival funciona como um hub que conecta desenvolvedores brasileiros ao público e a possíveis investidores, além de contar com palestras e premiações.
Ao todo, 74 pessoas ligadas ao mercado palestraram no evento. De acordo com levantamento do Terra, 71 eram brancos e 3, negros. Ao observar o gênero dos convidados, percebe-se que 62 eram homens e 12, mulheres.
Um dos três negros do evento, Marcos Silva ministrou a palestra “Jogos como Manutenção de Espaços Hegemônicos de Poder”. Ele e a esposa Raquel Motta são fundadores do estúdio Sue The Real, de Guarulhos (SP), focado em títulos com narrativas afro brasileiras. Por que abrir uma produtora com apenas um foco? “Não nos sentíamos representados nos games que jogávamos”, explica. “Achamos que poderíamos contribuir dentro dessa jornada”.
Silva utilizou em sua apresentação um exemplo curioso: o showcase de jogos brasileiros do BIG Digital. Essa mostra, selecionada a dedo pela produção do evento, mostrou alguns dos melhores jogos independentes com previsão de lançamento para este ano. Todos os apresentadores eram brancos.
“Não significa que essas pessoas [brancas] não devam estar aí”, explicou. “Precisamos reconhecer que elas conseguiram chegar na frente por causa dessa construção meritocrática”, explica. Isso é fundamental para entender como os videogames atuam para manter o mesmo padrão de gênero, cor e orientação sexual no topo.
Não à toa, em 2019, surgiu a primeira edição do PerifaCon, com o slogan de “Comic Con da Favela”. Produzido por negros e periféricos apaixonados por cultura nerd, o festival aconteceu no Capão Redondo, na periferia da zona sul de São Paulo (SP), para abraçar fãs que não encontravam espaço para consumir ou produzir conteúdo geek de qualidade. Esse evento é apenas um dos vários espalhados pelo Brasil, que buscam preencher buracos causados pela falta de representatividade.
Você precisa errar para acertar. E isso custa dinheiro
A mostra de games do BIG é importante porque funciona como uma vitrine a novos jogadores e possíveis investidores. Em edições anteriores, o evento contava ainda com prêmios em dinheiro a jogos em desenvolvimento. Em 2015, o designer e fundador da Rogue Snail, Mark Venturelli, faturou R$ 20 mil com o shooter Relic Hunters Zero, considerado o melhor “jogo de entretenimento” daquele ano.
O reconhecimento, porém, não veio do dia para noite: ele já contava com outros dois games no currículo: o Chroma Squad (2015) e Dungeonland (2013), que lhe proporcionaram experiência e conhecimento de mercado. “Foram sete anos fracassando. Isso não é força de vontade, é privilégio”, reconhece. “O mercado de games favorece só quem já é privilegiado”. Segundo ele, você precisa errar por anos para conseguir acertar uma única vez — e isso exige dinheiro.
“Parte dos brasileiros tem dificuldade de pagar a próxima refeição. Gente como eu, playboy, que foi sustentado pelos pais depois da faculdade, precisa reconhecer seus privilégios”, diz.
Isso acontece porque a indústria, mesmo que incipiente, está saturada; e a “barreira de entrada é punitiva”. Venturelli cita o paradoxo da mediocridade: o valor do que é produzido é baseado na média de tudo que é feito, e, hoje, está mais difícil produzir um jogo que ganhe os holofotes. “Há cinco anos, o Chroma Squad era incrível. Hoje, é comparável a qualquer outro jogo indie”
“A maioria não vai ganhar dinheiro nesse mercado, e isso acaba fechando a indústria para o mesmo grupo de sempre, com as mesmas pessoas privilegiadas”, diz.
O que fazer para mudar
Um problema estrutural complexo exige respostas de todos os setores: dos candidatos, das empresas e do governo federal. Essas respostas nem sempre são fáceis.
Quem quer entrar e sobreviver neste mercado precisa identificar em si mesmo algum diferencial — principalmente se você não for homem, branco e heteronormativo. Isso não significa ser a mente mais criativa, o melhor designer ou o programador mais hábil, mas, sim, reconhecer e trabalhar no melhor que você pode oferecer a um estúdio.
“Esquece a onda e olha para você mesmo. Todo mundo tem algo que o torna único”, diz Venturelli. Ele ressalta que o mercado de entretenimento, por definição, exclui a maioria das pessoas e, por isso, você precisa estar acima da média.
Outra alternativa é cadastrar o currículo em bancos de talentos voltados à diversidade, como o Black Game Developers. A Abragames tem um projeto semelhante, mas que foi paralisado por conta da pandemia — a ideia é lançar o portal o quanto antes. “Se as empresas não sabem onde procurar pessoas diversas, vamos levá-las até elas”, diz Camila, ressaltando que é preciso buscar profissionais em locais além das faculdades privadas.
Além do recrutamento, a hegemonia deve ser quebrada na cultura organizacional, explica Silva. Fazê-lo requer dois exercícios: o primeiro é questionar quantas vezes alguém fora do padrão esteve sentado em uma cadeira tomando decisões — e quantas vezes a cadeira foi cedida para elas. O segundo é oferecer treinamento a quem não têm fácil acesso à capacitação.
“O Facebook, no Brasil, disponibilizou cursos de inglês para trainees”, relembra Camila. “Apenas com isso, você para de excluir uma parte gigante de candidatos. Ela acredita que a ação precisa partir de estúdios já consolidados, já que a indústria é dominada por empresas de pequeno porte.
Já o governo federal, na visão de Venturelli, precisa subsidiar a indústria de games, que ainda é dominada por empresas de pequeno porte. “Qualquer mercado precisa de investimento do governo para se desenvolver, e isso precisa ser a longo prazo”, pontua. “Se não, você começa a desenvolver uma geração promissora de profissionais e os abandona depois de dois ou três anos”.
Pelo menos metade dos colaboradores do estúdio responsável por Relic Hunters não se enquadram no padrão de homens, heterossexuais e cisgênero. Embora a diversidade aumente “a passos de tartaruga” no estúdio, ele reconhece que ter um olhar atento ajuda a quebrar o ciclo hegemônico, a trazer mais histórias inovadores aos jogadores e a desenvolver a indústria. “No futuro, quero que essas pessoas criem a próxima Rogue Snail”.