Jogando no hard: Gamers com deficiência superam desafios para jogar
Paixão por games supera obstáculos e inspira outros jogadores
Jogos eletrônicos estão entre os principais meios de entretenimento da atualidade, com opções para todos os gostos e níveis de habilidade, mas nem sempre são acessíveis para todos. Os games e controles costumam ser pensados apenas para pessoas sem nenhum tipo de deficiência física.
O controle de um PlayStation ou Xbox tem entre 13 e 16 botões e muitos jogos pedem que o usuário execute comandos envolvendo dois ou três deles ao mesmo tempo. O que parece uma tarefa fácil para muita gente é um obstáculo enorme para as PcD, pessoas com deficiência.
Apenas recentemente as empresas e desenvolvedoras de jogos começaram a desenvolver produtos com suporte para jogadores com deficiência, sendo o mais notável o premiado Controle Adaptável do Xbox, lançado nos EUA em 2019 e que chegou agora ao Brasil.
“É como uma escada sem rampa de acesso na entrada de um shopping center”, compara Christian Bernauer, da organização Ablegamers. Da mesma forma que as rampas só apareceram depois que cadeirantes passaram a pedir por elas, o mesmo movimento vem acontecendo no mundo dos jogos digitais, com grupos como a Ablegamers e pessoas com deficiência mostrando que é possível superar obstáculos e se divertir normalmente apesar das dificuldades.
NÃO EXISTEM SOLUÇÕES PARA PROBLEMAS ESPECÍFICOS
É o caso de Laís Faccin, que desenvolveu uma doença degenerativa por volta dos 17 anos de idade. Aos 26, ela vive em uma cadeira de rodas e já perdeu muito da capacidade de movimento de seu corpo. Apaixonada por jogos desde a adolescência, ela conta que adaptou sua mesa e cadeira para poder jogar. Laís é uma das primeiras gamers brasileiras a experimentar o controle adaptável do Xbox.
“Eu comecei a pesquisar que tipo de controles existem para problemas específicos e o problema é que eles não existem. É muito difícil encontrar algo 100% pronto para usar no mercado, não é algo que você faz uma busca na internet e está resolvido”.
Para ela, que é fã de jogos de terror como Fatal Frame e Five Nights at Freddy,, o mais legal do controle adaptável é que ele não vem pronto. “Estou me surpreendendo. Você vai encaixando as coisas, botões, na distância que quiser. É como um mouse pad eletrônico, você gruda as peças na posição que quer. Ele vem com etiquetas para você nomear e tem muitas entradas diferentes”.
O controle adaptável testado por Laís é um produto desenvolvido pela Microsoft e que chegou ao Brasil em meados de abril. Ele permite personalizar suas partes para atender necessidades específicas e é compatível com praticamente qualquer ferramenta desenvolvida por terceiros, como pedais, botões e outras alternativas.
O produto não é tão acessível em termos de preço. O controle adaptável custa R$ 1 mil no site oficial da Microsoft e em lojas especializadas, mas segundo a fabricante, isso se deve à variação cambial e custos de importação.
“Nem a Microsoft nem as empresas parceiras, que vendem o controle, estão ganhando nada com ele”, explicou Bruno Motta, chefe da divisão Xbox no Brasil, em coletiva quando o controle foi lançado. “Estamos trabalhando com preço de custo para tornar o produto o mais acessível possível.”
47 PLATINAS, DARK SOULS COMPLETO.. COM UMA SÓ MÃO
Controles adaptáveis ainda não são uma possibilidade para todos os jogadores com deficiência, mas isto não impede que se divirtam - e muitas vezes, de forma impressionante pela habilidade e dedicação com que jogam “no modo hard”.
O “currículo gamer” de Rodrigo “Esquerdinha” é de fazer inveja: são 47 Platinas, como são chamados os troféus recebidos ao completar 100% um game de PlayStation, inclusive jogos espinhosos como a trilogia Dark Souls, Bloodborne e Sekiro.
“Os jogos da From Software são os meus favoritos”, conta Rodrigo, que também joga bastante Call of Duty: Warzone. As conquistas já parecem bem impressionantes para um jogador comum, mas ele faz tudo isso com apenas uma mão.
“Dez anos atrás eu sofri um grave acidente de moto, estava com meu primo, ele infelizmente perdeu a vida no local. Com a permissão de Deus e muita luta entre parada cardíaca e lesões graves, passei 15 dias na UTI e venci, mas fiquei com uma sequela. Tive uma lesão de plexo braquial, que causou a perda inteira de movimento e sensibilidade do braço direito”.
Apaixonado por jogos desde criança, Rodrigo ganhou um PlayStation 2 para afastar a tristeza provocada pelo acidente. “Com o apoio total da minha família, foi um combustível fundamental para eu voltar a viver, nos games e na vida real”.
Conhecido na internet como Esquerdinha, Rodrigo faz lives e vídeos de gameplay jogando seus games favoritos e acabou atraindo muitos fãs, que se impressionam com sua habilidade e exemplo. “O apoio da galera foi surreal, eu chorava de alegria quando via os comentários das pessoas"
Para ele, o reconhecimento veio quando o youtuber Patife, de quem é fã, o procurou para gravar um vídeo juntos. "Levou dias para a ficha cair”, lembra. Confira o vídeo:
HISTÓRIAS DE SUPERAÇÃO
Esquerdinha não se acha melhor do que ninguém por jogar com apenas uma mão. “Eu só quero mostrar para as pessoas que têm alguma deficiência que elas são capazes também, nunca desistam do que vocês amam fazer, não importam as suas limitações. Põe Deus no começo que ele honra sempre”.
Laís, que além de jogar gosta de fazer cosplay, conta que já recebeu mensagens de pessoas com deficiência agradecendo por ela mostrar que eles também podem se divertir. “Elas dizem se inspirar para fazer o que querem, porque se eu posso, elas também podem”.
Como nem tudo são flores, ela já foi alvo de mensagens de ódio e críticas nas redes sociais, mas diz não se abalar com esses comentários. “Já recebi ódio de graça na internet , mas eu já passei por tanta coisa ruim na vida para estar onde estou e fazer o que faço, que teria que ser muito mais do que ódio de internet para me fazer parar”.
Um conselho que Laís dá para os pais de jovens com deficiência é que tenham mais calma e paciência. “Quando vemos alguém que amamos sofrendo, tendemos a ser super protetores e é normal querer fazer tudo pela pessoa”, aponta. “Mas a pessoa vai sofrer, a gente é que tem que se adaptar ao mundo. PcDs vão passar por provações complicadas, então estejam ali para quando eles precisarem, mas não assumam o lugar deles”.
UMA QUESTÃO DE VISIBILIDADE
Histórias como a de Laís e de Rodrigo são o que move a organização Ablegamers no Brasil. Fundado nos EUA em 2004, o grupo trabalha no desenvolvimento de hardware específico, ajudando as pessoas a montar setups para jogar, orientação das empresas de games para criar soluções de acessibilidade nos jogos, tem um curso de design de jogos acessíveis, desde programação, design de áudio, vídeo, roteiro, todos os segmentos de desenvolvimento existem soluções de acessibilidade.
No Brasil, a Ablegamers atua com eventos beneficentes e desde 2020, com o reconhecimento da organização norte-americana, que atua na arrecadação de fundos e na conscientização do público gamer sobre a importância da acessibilidade.
Para Christian Bernauer, que representa a Ablegamers no Brasil, o trabalho do grupo terá um impacto muito maior no futuro. “Todos nós, se tivermos sorte, vamos viver o bastante para ficar velhos e na idade avançada não tem como não virarmos PCD, naturalmente. E tenho certeza, todos vão querer continuar jogando. O trabalho da Ablegamers não vai ajudar só quem é PCD hoje, mas também todos que vão continuar jogando lá na frente”.
Saiba mais sobre a Ablegamers, suas atividades e como ajudar através do seu Twitter oficial.