Sandro Manfredini: “Investidores têm preconceito com games”
Presidente da Abragames e diretor da Aquiris, Manfredini falou sobre como o coronavírus, a política e a economia afetam o setor
No dia em que o Terra entrevistou Sandro Manfredini, diretor de negócios da Aquiris Games Studio e presidente da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames), havia um rebuliço em torno da Secretaria Especial da Cultura do governo Jair Bolsonaro. Alguns dias antes, Regina Duarte anunciara que deixaria o cargo ocupado havia pouco mais de dois meses.
“Não conseguimos desenvolver nenhum relacionamento neste um ano e seis meses do novo governo porque as coisas mudam a cada três meses”, diz Manfredini. Ele explica que esse relacionamento é necessário para fomentar a indústria de videogames, que carece de investimentos públicos e privados. “Se fala muito no consumo de games no Brasil, mas não se fala de negócios”.
A indústria brasileira de jogos é composta em sua maioria por pequenas e médias empresas — a maior parte delas está no Sudeste. São 375 companhias no ramo; destas, 97% tem faturamento abaixo de R$ 3,6 milhões. Para se ter uma ideia, apenas o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, já tem mais que o dobro do total de empresas brasileiras. Os dados são do II Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais, publicado pelo Ministério da Cultura em 2018 em parceria com a consultoria Homo Ludens.
“O investidor brasileiro é bastante tradicional. Ele ainda não enxergou o canal de negócios de games no grande público. É mais fácil investirem em outras tecnologias do que em games”, diz. Mudar essa realidade é um dos principais desafios de Manfredini à frente da gestão da Abragames.
A própria Aquiris, estúdio do qual Manfredini faz parte, levou dois anos para achar um investidor que apostasse no negócio. Fundada em 2007, em Porto Alegre (RS), a produtora começou em um escritório de 30m², focada em desenvolver realidade virtual e advergames, ou seja, títulos encomendados por outras empresas para promover seus produtos ou marcas.
A alta procura possibilitou à Aquiris desenvolver propriedades intelectuais e histórias originais: hoje, além de atender empresas como a Cartoon Network, a empresa desenvolve também narrativas próprias, como Ballistic Overkill e Horizon Chase Turbo. Este último, um dos jogos mais aclamados pela crítica em 2018, foi lançado em versão física para consoles e vêm recebendo updates até hoje, como o que adicionou duas pistas de corrida inspiradas em Porto Alegre — cidade onde tudo começou.
Leia, abaixo, os melhores trechos da entrevista com Sandro Manfredini.
Queria que você me falasse um pouco sobre a sua história com videogames.
Minha história começa antes dos 10 anos de idade, quando morava em Brasília. Era a febre do Atari, a época em que não podia jogar demais porque estragava a TV.
Em um supermercado perto de casa, vendiam o Odissey, distribuído pela Phillips aqui no Brasil. Era um videogame com uma capacidade muito parecida com a do Atari, mas, por ter um teclado na frente, eu o achava muito mais tecnológico. Quando completei 10 anos, ganhei esse Odyssey. Eu e meu pai disputávamos em um jogo chamado Ovni (1983). Foi uma época interessante de conexão com ele. Outro muito importante para mim foi o Ayrton Senna’s Super Monaco GP II (1992), para Mega Drive.
A partir daí tive um grande gap de videogame. Isso só voltou a ser algo importante para mim quando meus atuais sócios da Aquiris me chamaram. Eu tenho de tudo agora, mas não sou um gamer hardcore.
O que você está jogando agora?
Tenho jogado muito Captain Toad (2014), que é infinito, e Mario Tennis Aces (2018). No celular, jogo muito pelo Apple Arcade; o último foi Where Cards Fall (2019), um puzzle. Gosto muito do Apple Arcade porque tem vários de quebra-cabeça, e também porque estamos desenvolvendo um jogo para lançar na plataforma no fim do ano.
Você pode falar sobre esse jogo que será lançado para o Apple Arcade?
Estamos fazendo a divulgação em conjunto com a Apple, então não temos a liberdade para divulgar agora. Mas eu estive no evento lançamento, em março de 2019, no Apple Park. Foi exibido um vídeo no telão e ele tinha um segundo do gameplay do nosso jogo.
Qual será o futuro do mercado de games? Para qual tipo de game ou tecnologia vamos caminhar?
Todos os gêneros e formatos vão coexistir, assim como o jornal coexiste com o rádio, com o online… Essa convivência traz um crescimento absurdo. Os games para celular são metade do faturamento de toda a indústria, mas ainda existirão pessoas que ficam fascinadas com uma demo técnica, como a da Unreal Engine do PS5, e pagam US$ 500 por isso.
Estamos tentando entender se o AR (realidade aumentada) será uma tendência nos games. Ainda é difícil enxergar que efeito isso vai causar, como uma outra linguagem.
As realidades aumentada e virtual ainda são tecnologias muito cosméticas. Não se tornaram uma tecnologia de massa. O próprio VR tem poucos jogos de peso.
Pela inconveniência. O VR (realidade virtual) é caro, pesado. Agora que estão saindo os devices sem fio. Depende de quão menores os dispositivos sejam e das suas capacidades de tela. Talvez o VR possa a vir ser algo tão importante quanto um console, ou o console sempre vir com um headset na caixa.
A Aquiris planeja desenvolver para a nova geração?
Ainda não. O nosso principal foco agora é a propriedade intelectual, como é o Horizon Chase Turbo e o jogo que vamos lançar para o Apple Arcade. Criando essas propriedades intelectuais fortes, vamos explorar o máximo de consoles e plataformas que fizerem sentido para elas. Imagine o Fortnite: ele é um cross platform que funciona muito bem em todas. O mais importante é o jogo em si, independentemente se for para celular ou para console.
Como o coronavírus está afetando a produção e o consumo de games?
Talvez seja cedo para ter conclusões sobre isso. Nós conversamos e fizemos pesquisas com os associados da Abragames, e descobrimos que a migração para o home office foi relativamente bem. Muitas empresas menores já trabalhavam dessa forma. Para as maiores, foi um desafio a mais.
Na Aquiris, que emprega 115 pessoas, está funcionando por enquanto. Nosso receio é em relação ao ritmo e às ferramentas de trabalho, que ainda não são integradas. Um jogo é uma peça criativa e, eventualmente, a distância pode trazer algum problema de coesão no produto final. Ainda não identificamos isso, mas estamos monitorando.
O consumo está crescendo, está se vendendo mais. Mas nós somos uma indústria global e, no Brasil, muitas empresas se associam a outras internacionais para distribuição e financiamento. Com o cancelamento da Game Developers Conference (GDC), da E3 e da Gamescon, muitos festivais e eventos de negócios estão sendo realizados online. Por mais que ajude, não é a mesma coisa que estar presencialmente no mesmo local, interagir, ir para um bar, construir um contato sólido. São ligações, afinidades que você não consegue estabelecer por uma tela.
Isso deve ser primordial para estúdios pequenos. Já conversei com muitos estúdios nacionais que paralisaram seus projetos pela falta de dinheiro.
É exatamente o caso. E as empresas que vão para esses eventos não necessariamente fecham negócio na hora. Isso acontece meses depois. Esses eventos são um ponto de contato com possíveis investidores, que ainda têm preconceito com a indústria de games. Quando nós procuramos investimento, demoramos dois anos para conseguir.
Por que preconceito?
Quando o investidor não conhece o segmento, tem bastante aversão. O investidor brasileiro, em geral, é bastante tradicional e ainda não enxergou o canal de negócios de games no grande público.
É muito mais fácil para eles investirem em outras tecnologias ou em outros setores sobre os quais tenham um pouco mais de conhecimento. Se fala muito sobre o consumo de games no Brasil, mas pouco de negócios. Essa é a agenda da Abragames enquanto associação: abrir os olhos de investidores, procurar a ajuda do Estado, da Ancine, do Fundo do Setor Audiovisual e do BNDES para abrirmos mais empresas de games no país.
Como vocês observam o governo federal nessa história?
Temos canais oficiais para nos conectarmos com o governo. Um deles é o Conselho Superior de Cinema, com várias pessoas ligadas à indústria criativa, como cinema e games. Eles estavam dentro da Casa Civil, então tínhamos reuniões no ano passado com o Onyx [Lorenzoni, então ministro da pasta].
Não é engraçado o Conselho Superior de Cinema abraçar games? É um reflexo de como o governo observa a indústria?
É isso e vários outros problemas. Quem está no poder tem mais sensibilidade ou não a certas indústrias. O último ministro, Sérgio Sá Leitão, hoje secretário de cultura do Estado de São Paulo, era um grande apoiador dos games. Ele chegou a apoiar um incremento de verba e financiar o II Censo da Indústria. Essa sensibilidade varia com cada governo e indústria.
Agora, as coisas estão bem complicadas. Acabamos de ver a Regina Duarte caindo. Não conseguimos desenvolver nenhum relacionamento neste um ano e seis meses do novo governo porque as coisas mudam a cada três meses.
Não consigo imaginar o impacto que vocês sentem com esses vaivéns da Cultura.
Está sendo um problemão para toda a indústria audiovisual. A gente até tem uma voz menor, mas há uma série de manifestações de todos os artistas. A própria Regina sofreu uma série de protestos por não fazer nada andar na Secretaria de Cultura. Está sendo bem ruim para nós, mas eu diria que o mercado de games é o que está se saindo melhor dentro de todas as verticais do audiovisual.