Sobre falhar e depois lançar um ótimo jogo narrativo

Depois de um começo quase meteórico no desenvolvimento de jogos após se formar, tendo a chance de ir trabalhar fora do Brasil e recebendo muito bem, Michelle Santos resolveu jogar tudo pro alto e se dedicar a criar suas próprias histórias. É um roteiro que faz muito sentido e se repete no mundo independente - e que pode tanto dar certo quanto dar errado. Ou dar errado primeiro pra dar certo depois.

Nesse cenário, a ilustradora de Goiás foi uma das fundadoras do estúdio Funbites Game Studio ao lado da Bullas (programadora),  João (programador) e Gustavo (Interfaces). O quarteto começou pegando fogo e engatou em um projeto grande para um edital. Esse projeto acabou saindo do controle, as coisas ficaram empacadas e o tempo corria pra entrega do produto final.

“Foi uma sequência de processos que deram errado e no final a gente entregou o que dava pra lançar pra entregar o jogo pro edital e não lançamos comercialmente”, Michelle me contou durante o episódio do podcast Controles Voadores. Como se não bastasse, o amigo e sócio Gustavo Camargo contraiu melanoma e faleceu durante o desenvolvimento, ajudando ao máximo enquanto podia.

A Funbites ficou em espera, lidando com esse luto. E as feridas ainda estavam cicatrizando quando chegou a pandemia de 2020 e trancou todo mundo em casa, matando os mais de 700 mil brasileiros durante um governo abertamente fascista e genocida.

Nessas indas e vindas, em 2021 Michelle conseguiu dar início a um projeto antigo graças a Lei Aldir Blanc, recurso da secretaria de cultura de Goiás. Neve veio da ideia de usar um cronômetro pra explorar uma narrativa com ramificações e escolhas difíceis, com uma história envolvente e que debate coisas como precarização do trabalho e relações humanas dentro do capitalismo.

O jogo é uma aventura narrativa em que você é a capitã de uma nave espacial cargueira que está presa na câmara de criogenia e só tem mais sessenta minutos de oxigênio. Nessa posição extremamente claustrofóbica e limitante, você precisa comandar suas duas subordinadas - uma veterana casca grossa e uma novata misteriosa - a explorar esse planeta gelado inóspito conhecido como “Cemitério de Naves” em busca de equipamentos pra consertar sua nave.

Com esse recurso da Aldir Blanc, Michelle pode contar com o músico Arlam Júnior na trilha sonora, o cineasta e roteirista Wadson Alvim e o assistente de programação Pedro Henrique Cesar Godoi. E a infusão de grana valeu cada centavo, Neve é excelente, tem uma arte linda e uma história complexa que te faz se sentir na pele das personagens. Falarei mais detalhadamente numa futura análise do jogo por aqui.

Uma das preocupações da ilustradora nesses dez anos de trajetória dentro do desenvolvimento sempre foi fomentar e desenvolver o cenário dev do seu estado. “O cenário de Goiás é sempre um passo pra frente e dois pra trás. Quero que as pessoas olhem e falem, ah que daora, eu quero fazer isso também", disse Michelle, que se inspirou muito pela forte cena de desenvolvedores de Brasília, principalmente no trabalho da finada Indie Warehouse, coworking de games encabeçado por nomes como o de Saulo Camarotti, fundador da Behold Studios.

Michelle precisou dar um passo pra trás pra entender que falhar faz parte do processo e que às vezes os códigos funcionam sem a gente saber porquê. Várias vezes eu também precisei ficar algumas semanas sem publicar um episódio ou conseguir escrever um texto pra cuidar da saúde mental, lutar contra a síndrome do impostor ou lidar com a auto cobrança que é meio que exigida da gente nesse mar de comparação com os sucesso dos outros e fracasso de nós mesmos.

E gravar esse episódio foi uma puta injeção de ânimo em relação a tudo isso, a manter o Controles e continuar ouvindo as histórias dos desenvolvedores e jogos brasileiros. A dev disse que ouvir o episódio com o Laialex sobre Deliria ajudou ela a entender a necessidade de normalizar nossas falhas. E saber disso é um daqueles atestados que reafirmam o que eu sempre quis pra cá, ser um negócio com os devs e para os devs. Obrigado por isso, Michelle.