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'Tell Me Why' é convite a sentir dramas familiares na pele

Em entrevista ao Terra, o diretor do game, Florent Guillaume, fala sobre o peso da narrativa e o primeiro protagonista trans dos videogames

4 set 2020 - 12h09
(atualizado às 12h38)
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Existe um estereótipo que ronda a comunidade de fãs do Xbox há anos: o de que sua comunidade é extremamente preconceituosa e tóxica na internet. Dois episódios recentes reforçam esse pensamento: em maio, um jornalista da ESPN sofreu ataques de ódio ordenados após comemorar a presença de personagens negros em Valorant; em junho, enquanto empresas postavam mensagens favor do Vidas Negras Importam, um meme do canal Xbox Mil Grau foi o estopim para jogadores exigirem posicionamentos dessas mesmas empresas. Uma delas foi a Microsoft.

A comunidade viralizou um compilado de vídeos com frases supremacistas e preconceituosas do grupo. Em um trecho, um streamer diz que “a filha dele resolveu ficar maluca e querer passar de homem”. Ele continua: “dá um tapa na cara dela e fala ‘vira gente, filha da p***”, enquanto outro participante ri.

Esse contexto prova que Tell Me Why, o novo exclusivo para Xbox e PC, chegou no momento em que mais precisamos dele, em meio ao avanço dos extremismos e da intolerância — principalmente na comunidade gamer. O jogo da Dontnod Entertainment (mesmo estúdio de Life is Strange) é o primeiro a trazer um homem transgênero como protagonista. Mais que isso, trata-se de um homem transgênero complexo, com uma personalidade que vai muito além do seu gênero.

O peso da responsabilidade

A história se concentra na relação dos irmãos gêmeos idênticos Tyler e Alyson Ronan. Eles passam por um momento trágico na infância: Tyler supostamente mata a mãe Mary Ann em legítima defesa e, por isso, é preso e separado de sua irmã. Eles se reencontram dez anos depois para vender a antiga casa da família, no Alasca, enquanto descobrem que tudo o que aconteceu no passado pode ter outros significados.

Tyler e Alyson podem rever memórias da infância durante o gameplay
Tyler e Alyson podem rever memórias da infância durante o gameplay
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

“Nós sabíamos o que isso [Tyler ser um personagem trans] significaria”, explicou o diretor do jogo, Florent Guillaume, em entrevista exclusiva ao Terra. “Sabíamos da importância dessa representatividade, e também da nossa responsabilidade de como iríamos apresentar essa comunidade”.

O diretor de Tell Me Why, Florent Guillaume
O diretor de Tell Me Why, Florent Guillaume
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

O estúdio recebeu uma consultoria para construir Tyler como um personagem trans: por mais de dois anos, eles trabalham lado a lado com a organização não-governamental GLAAD, que monitora a maneira como a mídia representa pessoas LGBT+. O grupo foi fundado em 1985 em resposta à cobertura do jornal New York Post sobre o surgimento do HIV e da Aids. A parceria possibilitou um olhar mais atento à criação da história, ao design do personagem e até mesmo à dublagem — Tyler é interpretado por um homem trans, August Aiden.

Guillaume ressalta que esse cuidado ocorreu porque “há muitas representações ruins” de personagens LGBT+ nos videogames não somente na quantidade, mas também na maneira como eles são colocados na tela. “É bem raro você trabalhar em um projeto desse tipo e esperar uma mensagem positiva no final”, diz.

Porém, como fazer com que jogadores preconceituosos entendam a importância de um protagonista transgênero? O diretor aposta no poder que os videogames têm de “nos conectar aos personagens. “Esperamos que as pessoas se identifiquem e entendam o Tyler, o Michael e os outros personagens. Podemos tentar educar as pessoas que nunca tiveram essas conexões em suas vidas”.

Tyler é um personagem transgênero, e isso é ótimo para os videogames. Mas ele não é apenas isso
Tyler é um personagem transgênero, e isso é ótimo para os videogames. Mas ele não é apenas isso
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

Embora seja uma peça-chave na narrativa, a transexualidade de Tyler é apenas um detalhe: ele não está em fase de autodescoberta ou com dúvidas sobre o seu corpo. Além disso, Tell Me Why não esfrega o gênero do personagem na sua cara nem tenta forçar uma empatia por causa disso. Tudo é construído de maneira natural pelo todo que ele é: um personagem complexo, com qualidades e falhas, assim como sua irmã Alyson e todos os outros personagens da trama. “Ninguém no jogo é perfeito. Acho que são essas falhas que fazem com que os jogadores se relacionem com os personagens”, diz Guillaume.

Nunca conhecemos nossos familiares de verdade

Mary Ann é uma personagem agressiva e preconceituosa, mas os irmãos descobrem que nem tudo é o que parece
Mary Ann é uma personagem agressiva e preconceituosa, mas os irmãos descobrem que nem tudo é o que parece
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

A forma como o jogo aborda a transexualidade é um marco nos videogames. Porém, o diretor de Tell Me Why ressalta que o foco do game são as relações familiares, e como esses laços podem ser difíceis ou dolorosos. 

Uma das cenas mais emblemáticas é apresentada logo no início do jogo. Os irmãos fazem as malas e se preparam para um reencontro após dez anos separados. Quando eles se encontram, há uma felicidade no ar — afinal, ainda restam memórias boas da infância e um laço familiar forte. Entretanto, maior que essa felicidade, é a estranheza. Os dois são completos estranhos um ao outro.

“O reencontro é um ato de fé dos dois”, acredita Guillaume. “Eles estão animados, mas também estão com medo, desconfortáveis. Para Tyler, é difícil reencontrar a irmã após a transição. Porém, a intimidade e a conexão que os dois têm é maior que tudo, e a relação dos dois vai crescendo ao longo do jogo. É nisso que queríamos focar”.

Mesmo separados por tanto tempo, laço entre Tyler e Alyson continua forte
Mesmo separados por tanto tempo, laço entre Tyler e Alyson continua forte
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

O diretor diz ainda que se inspirou na sua própria relação com o irmão para construir esse laço no game. “Eu queria compartilhar essa experiência, o amor que eu sinto por ele de alguma maneira. Isso me motivou a fazer esse jogo e falar sobre esse assunto”.

Ao vasculhar a casa em que viveram na infância, eles encontram objetos que os fazem duvidar de que a mãe deles, Mary Ann, era realmente uma pessoa tão ruim quanto eles imaginavam. Eles relembram memórias, questionam pessoas e tentam recontar uma história ofuscada pelo trauma. Afinal, ela foi uma mãe agressiva? Ela não aceitava a transexualidade de Tyler? Quem era ela quando ficava sozinha em seu quarto?

Drama familiar é a espinha dorsal do game
Drama familiar é a espinha dorsal do game
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

“Foi muito interessante para nós explorarmos e darmos vida a uma personagem que não está mais lá”, diz Guillaume. “Nós nunca conhecemos nossos familiares de verdade, especialmente quando somos crianças. Todo mundo tem segredos, uma intimidade que ninguém conhece. Quando você é jovem, não tem a mesma perspectiva. Você não observa o mundo nem a sua família como você observaria se fosse adulto”.

Em seu produto final, Tell Me Why apresenta uma jogatina semelhante aos outros games da Dontnod. Você assiste a muitas cenas, resolve quebra-cabeças e toma decisões que afetam (ou não) o desenrolar da história. Assim como em Life Is Strange, o objetivo é fazer com que você entre na pele dos personagens e sinta a profundidade daquele drama.

Devo admitir que o jogo consegue cumprir essa missão: logo no primeiro capítulo, pude relembrar vários momentos da minha infância, as dores e os amores da relação com a minha família e do que eu tive de abrir mão para estar onde estou hoje. Como uma pessoa da comunidade LGBT+, em várias vezes me vi em Tyler; em outras vezes, me sentia como sua irmã, Alyson. No fim de tudo, estamos sempre tentando ser as melhores versões de nós mesmos, buscando tomar as melhores decisões.  Falhamos na maioria das vezes, mas... bem… somos todos humanos, certo?

Tell Me Why é uma experiência”, acredita Guillaume. “Tenho certeza de que hoje, com a Twitch, o YouTube e outras tecnologias, as pessoas que não têm um Xbox poderão sentir essa mesma experiência. Esse jogo pode levar uma mensagem através de diferentes plataformas”.

O diretor de Tell Me Why acredita que o jogo pode levar uma mensagem positiva a todos os jogadores — não somente os de Xbox
O diretor de Tell Me Why acredita que o jogo pode levar uma mensagem positiva a todos os jogadores — não somente os de Xbox
Foto: Divulgação / Dontnod Entertainment

Este jogo foi cedido ao Terra gratuitamente pela Microsoft. O título é dividido em três capítulos; o segundo foi lançado oficialmente na última quinta-feira (3). O jogo está disponível para Xbox e PC, e também no catálogo do serviço Xbox Game Pass.

Fonte: Redação Terra
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