The Last of Us 2 vai embrulhar seu estômago. E isso é bom
Novo game da Naughty Dog é uma obra prima que fará você se questionar o tempo todo; confira nosso review
A música Through the Valley, do cantor americano Shawn James, traduz o que você deve esperar de The Last of Us Part 2, que chega ao PlayStation 4 no dia 19 de junho. Não à toa, essa é a canção que Ellie canta no trailer de anúncio do game, divulgado em 2016.
"Eu ando pelo vale da sombra da morte
E não tenho medo do mal, porque sou cega para tudo
E minha mente, minha arma, eles me confortam
Porque eu sei que vou matar meus inimigos quando eles chegarem
Certamente a bondade e a misericórdia me seguirão em todos os dias da minha vida
E habitarei nesta terra para sempre mais
Triste eu ando ao lado das águas tranquilas e elas restauram minha alma
Mas não posso andar no caminho certo, porque estou errada
Não, eu não posso andar no caminho certo
Porque eu estou errada"
Na continuação do premiado jogo da Naughty Dog, controlamos uma personagem cega pelo ódio, que, dia após dia, percebe as consequências dos seus atos na pele e na alma. Aliás, esses efeitos também são sentidos por quem controla a protagonista. A cada jogatina, eu me sentia péssimo. Só queria ficar jogado na cama.
O gameplay, de maneira arriscada, faz com que você sinta raiva, ódio, tristeza, emoção, felicidade… às vezes tudo ao mesmo tempo. Esses emaranhados emocionais tornam The Last of Us Part 2 um jogo corajoso. Seria muito mais fácil para a produtora Naughty Dog manter o final relativamente feliz do primeiro jogo sem provocar as devidas reflexões sobre as atrocidades e egoísmos de Joel. Por que arriscar a estragar uma história tão bem amarrada e aceita pelo público?
Tal coragem tornou possível uma continuação que supera o seu antecessor em quase todos os aspectos, com destaque no texto. Embora o jogo fique mais amargo a partir da segunda metade, tudo se encaixa e se mantém coeso.
Entretanto, jogue sem expectativas: a Naughty Dog não quer agradar você.
Nem mesmos os vazamentos que circularam pela internet devem estragar sua experiência pelas mais de 25 horas de gameplay. Cada reviravolta é única e, às vezes, inacreditável. Caso você tenha deparado com algum spoiler, acredite: eles não fazem diferença.
Explico o porquê neste review, sem spoilers.
“Pelo vale da sombra da morte”
No primeiro The Last of Us (2013), o jogador vê o mundo perecer após o surto do fungo Cordyceps (que existe na vida real, aliás). Somos apresentados a um homem assombrado pelo passado que faz qualquer coisa para garantir o dia seguinte.
Um dos grandes trunfos do jogo, sua carga emocional se concentrava no apego entre Joel e Ellie, uma garotinha imune à infecção. Enquanto eles cruzavam o país para encontrar os vagalumes, que poderiam criar uma vacina, o jogador assiste à criação de um laço quase paternal entre os dois.
Nesta continuação, a carga emocional se concentra em como Ellie lida com o luto.
Agora com 19 anos de idade, Ellie tem uma vida comum ao lado de Joel, Tommy e outros dois novos personagens: Dina e Jesse. Além de carismáticos, eles serão essenciais para que o jogador entenda a personalidade que a protagonista desenvolveu em Jackson, Wyoming – além de, claro, criar empatia por aquele universo.
Ellie descobre segredos importantes do passado e precisa lidar com uma experiência traumática logo no início da história. Ela decide deixar a pacatez daquela comunidade a fim de encontrar vingança em Seattle, um local totalmente novo para a personagem. É nesta cidade que o jogo se passa pela maior parte do tempo: você vai explorar prédios abandonados, procurar pistas e descobrir outros grupos de sobreviventes também dispostos a fazer qualquer coisa para proteger seus amigos e ideais.
Todo o quebra-cabeça é montado através de flashbacks. Em certo momento, essa alternância entre passado e presente coloca os mesmos atos de violência sob diferentes pontos de vista. Você começa a questionar se Ellie e Joel são, realmente, os heróis da história. Ou se, pelo menos, há espaço para algum herói neste mundo.
“Vou matar meus inimigos quando eles chegarem”
Enquanto no primeiro jogo você procurava pela milícia dos Vagalumes, agora o objetivo é encontrar a Washington na Luta pelo Futuro (WLF), cujos integrantes são conhecidos como lobos. São um grupo numeroso, altamente militarizado e com diversas bases espalhadas por Seattle. Essa milícia está em constante disputa contra um grupo extremista religioso, os serafitas, que acreditam que a pandemia foi uma solução divina a fim de castigar os pecadores. Chamados de cicatrizes devido a marcas no rosto, eles se comunicam por assobios e usam armas mais silenciosas, como arco e flecha.
A WLF, embora seja a principal ameaça do jogo, lembra muito os Vagalumes pela potência bélica e rebeldia contra os militares; ou seja, eles não são um grupo que surpreende o jogador. Os serafitas, por outro lado, assustam pela brutalidade e pela devoção, beirando o doentio. Confesso que esperava mais da seita: como são sorrateiros, imaginava que eles se esconderiam na grama e nos cantos para pegar a Ellie de surpresa. Depois de alguns encontros, porém, ambos os grupos se tornam bem parecidos de se combater.
Para escapar desse conflito já estabelecido, Ellie precisará passar por situações extremas, com muito sangue, porradaria e atitudes questionáveis. As cenas de violência estão muito mais explícitas e grotescas, chocando nos pequenos detalhes: como quando você imobiliza um inimigo por trás, manda ele calar a boca e o estrangula até seus olhos revirarem; ou quando o inimigo agoniza desesperadamente de dor ao levar um tiro.
Além de pessoas, você precisará lidar também com cachorros, treinados para matar invasores. Eles podem farejá-lo, e suas únicas alternativas são despistá-los com objetos ou matá-los.
É importante frisar que, agora, seus inimigos têm nome. Quando alguém percebe que um companheiro morreu (seja ele humano ou cachorro), ele grita, lamenta, chama pelo nome e avisa o resto do grupo. O mesmo vale para os animais: eles choram e uivam pelo corpo.
A inteligência artificial foi aprimorada. Diferentemente do antecessor, eles conseguem enxergá-lo a alguns centímetros de distância, mesmo se você estiver atrás de um móvel ou deitado na grama alta. Eles também procurá-lo em frestas e embaixo de veículos. Caso o encontrem, vão avisar ao resto do grupo sua localização exata.
Para evitar ser percebida, Ellie pode usar algumas de suas novas habilidades: ela aprendeu a nadar, deitar no chão, se esconder na grama alta ou embaixo de caminhões, atravessar lugares estreitos, quebrar janelas, pular e se pendurar em cordas (mais Uncharted, impossível). As novas capacidades da personagem são essenciais para se esconder, fugir e resolver puzzles. Você também pode desbloquear novas árvores de habilidades, divididas em sobrevivência, criação, furtividade, precisão e explosivos.
Devido à diferença de tamanho entre Ellie e Joel, sair correndo para socar alguém armado não é uma opção inteligente. Sair de fininho será a melhor escolha em vários momentos. Também é possível atrair um bando de infectados a um grupo de humanos — deixar que eles se matem sozinhos até é encorajado.
Ellie estará acompanhada por Dina ou por Jesse durante boa parte do jogo, e eles são bem úteis, podendo alertá-la de que um inimigo está se aproximando ou que você está prestes a cair em uma armadilha. Seus aliados também não são mais invisíveis quando saem correndo pelo cenário — algo bem bizarro que acontecia frequentemente no primeiro jogo.
Destaque também para os novos infectados: os trôpegos, gigantes que atacam com bombas de esporos que causam queimaduras; e os espreitadores, que se escondem e esperam o momento ideal para atacar Ellie. Estes últimos foram a melhor adição do jogo: eles não são detectados no modo escuta e causam um susto tremendo quando agarram você de surpresa ou saem de paredes. Matá-los indivualmente é fácil, mas a situação complica quando vários tipos diferentes atacam você ao mesmo tempo. Há ainda um outro tipo de mutação, ainda mais poderosa que o trôpego, mas não vou falar sobre ele para evitar spoilers.
Sobre os cordyceps já conhecidos, o estalador ficou mais interessante. Cego e com uma audição aguçada, ele consegue ouvir a sua respiração a poucos metros de distância, mesmo que você permaneça parado no mesmo lugar. Uma habilidade desbloqueável ao longo da história é prender a respiração enquanto mira, o que pode ser bem útil para não ser detectado.
Embora a inteligência artificial tenha evoluído, tanto os humanos quanto os doentes ainda são bastante previsíveis. As novidades de Seattle, porém, tornam os encontros mais interessantes, com os inimigos melhor espalhados no mapa em vários níveis. Você não pode andar livremente pelo cenário porque há vários inimigos vigiando os andares de cima, por exemplo – algo absorvido de Uncharted 4: A Thief's End (2016). Os recursos continuam escassos, portanto, é bom vasculhar cada gaveta enquanto abate inimigos furtivamente.
“Triste eu ando ao lado das águas tranquilas”
The Last of Us Part II entrega tudo o que se espera no fim de uma geração de consoles: gráficos deslumbrantes, animações marcantes e um trabalho de sonorização muito melhor que a do primeiro jogo, cujas discrepâncias de volume eram irritantes.
Mesmo no PlayStation 4 Slim, os gráficos são de tirar o fôlego. A transição entre gameplay e cutscene é praticamente imperceptível, e as animações dos personagens transmitem a emoção certa para cada momento: das sobrancelhas franzidas aos olhos lacrimejados, você consegue sentir na pele exatamente o que Ellie está sentido. Repare na respiração ofegante, quase desesperada, da protagonista.
A Naughty Dog, porém, não soube aproveitar o talento de Gustavo Santaolalla nesta continuação. Seu estilo único, que flutua entre o country e o blues, está menos presente que no primeiro jogo. Em compensação, o estúdio soube escolher bem os momentos em o silêncio predomina, deixando o jogador tenso e atento a todos os sons do ambiente, como no tique-taque do relógio ou nas ruínas de um prédio aos pedaços.
É preciso ressaltar o excelente trabalho de dublagem para o português brasileiro, principalmente o da intérprete de Ellie, Luiza Caspary, que soube envelhecer e transparecer a nova personalidade da protagonista. No entanto, o estúdio pecou em não regravar os sons de força que a personagem faz para atacar — o que é percebido inclusive no trailer oficial do jogo.
“Não posso andar no caminho certo, porque estou errada”
Considero-me uma pessoa muito sensível a qualquer tipo de obra de entretenimento — fico facilmente abalado ao assistir qualquer situação dramática. O primeiro The Last of Us me emocionou muito, mas sua continuação me deixou confuso. Esse é um jogo pesado, que vira do avesso todas as percepções que você tem dos personagens e que o obriga a fazer coisas desagradáveis. Às vezes, eu detestava a Ellie; em outras, me enxergava nela.
A partir da segunda metade do título, a temperatura esfria. Não posso falar mais detalhes para não entregar a história, mas a sensação é a de que você está jogando um outro game completamente diferente. Você deseja que essa reviravolta acabe logo, até, lentamente, criar empatia aos personagens e àquele ambiente.
O jogador acaba aceitando essa nova narrativa depois de algum tempo, quando começa a perceber que todos os personagens, sem exceção, são vítimas daquele mundo lançado às traças. Quando você aceita isso, percebe que o game é uma obra prima.
Lembra quando eu disse que a Naughty Dog não quer agradar você?
As decisões amargas e corajosas do game resultam em uma das histórias mais complexas e bem construídas da indústria cultural. Há cenas tão emocionantes quanto a das girafas e mais tensas do que a “do que você tem medo?”, do primeiro game. Entretanto, o novo consegue embrulhar seu estômago e fazê-lo se questionar sobre todas as suas certezas. Fui às lágrimas em vários momentos, principalmente quando os créditos subiram.
Os personagens só se livram de seus pesadelos quando fazem as pazes com sua história. O problema é que todos perdem até perceberem isso – alguns, nem conseguiram. As jornadas por matança eram apenas a camada mais superficial de uma busca transcendental pela paz: com o passado, com eles mesmos e com esse mundo.
No fim de tudo, senti pena.
“Não, eu não posso andar no caminho certo
Porque eu estou errada”