Via Sat promete repetir sucesso em 2000Nação Zumbi levantou a galera no ano passadoPúblico se divertiu bastante no Rec Beat 99

RecBeat 2000 - O mangue manda

por Marcelo Firpo


 
Ao chegar ao Recife em pleno sábado de carnaval, lembrei da primeira vez que vi Chico Science. Foi numa loja de revistas no Shopping Praia de Belas, no começo dos anos 90, ele tava na capa de uma General, e eu, passando de relance, pensei: "Ih, olha só o Edu K na capa da General!" Até aquele momento só tinha ouvido falar muito por cima na tal de cena manguebit e achado a coisa toda de uma pretensão absurda. Ainda mais vendo aquele desconhecido que nem disco lançado tinha, todo metido na capa da revista, cercado por duas mulheres. A primeira impressão foi de que não era coisa séria.

Corta pro presente. Tô chegando numa Recife estranha pra mim, às 22h30min, sem reserva em hotel, no sábado de carnaval. Aqui a primeira impressão também é das mais esquisitas: a passagem do bloco Galo da Madrugada, durante a tarde, deixou o centro com cara de terra arrasada: montes de lixo por todos os lados, asfalto grudento, gente jogada aqui e ali e um fedor pesado de mijo e cerveja choca. O hotel que eu acabo conseguindo parece um oásis no meio dessa zona, e o Velho Que Eu Estou Me Tornando insiste que talvez seja melhor dormir cedo e conhecer a cidade no dia claro seguinte. O Guri Que Resiste argumenta que só temos 4 noites e ainda dá pra pegar, no mínimo, o show do mundo livre s/a. É isso aí. Rua da Moeda, Recife Antigo, lá vamos nós.

Imagine o Largo Glênio Peres, aqui em Porto Alegre. Agora cerque com prédios antigos. Pinte os prédios quase todos com grafites coloridaços. Dentro dos prédios, coloque uns bares legais, mesas na calçada, aquela coisa toda. Num dos extremos da rua, coloque um palcão. No outro, um asfalto cheio de skatistas andando pra lá e pra cá na transversal. Bote umas árvores grandonas aqui e ali, estilo Praça da Alfândega. Foi? Agora o principal: lote o lugar de gente amigável, alternativa sem ser besta e antenada sem ser chata. Como é carnaval, bote um monte de fantasiados e fantasiadas (tinha até a gang do Laranja Mecânica!) e acrescente uma atmosfera de alegria quase infantil, sem qualquer fazeção. Pronto, agora pode abrir o sorriso que eu abri quando cheguei no RecBeat.

Uma semana de festival, umas 40 atrações diferentes, incluindo Ira!, Fellini, Mestre Ambrósio, mundo livre s/a e Pedro Luis e a Parede, um público pra lá de animado e, principalmente, uma grande demonstração de força: tudo isso aconteceu em pleno carnaval, rivalizando com um monte de shows e desfiles por todo o Recife, sem falar em Olinda, que fica do lado. Se eu tinha alguma desconfiança em relação à legitimidade interna do manguebit - e eu tinha – ela foi Capibaribe abaixo em dois tempos. O troço é de verdade, não é uma armação pra executivo de gravadora ver, não é uma piração de meia dúzia (talvez até tenha sido no começo, mas quem se importa agora?), não é um pastel de vento. Na real, dá pra ver que a galera tem orgulho da cena e suas ramificações, e aceita de peito e cabeça abertos a proposta de "Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão". O que mais poderia explicar o magrão de camiseta do Deicide que eu juro que vi dançando maracatu?

Mas vamos aos shows, pelo menos os que eu vi: mundo livre foi poderoso, quando os caras tocam no próprio campinho, a coisa toda ganha em sentido e coesão, bem legal. E a galera poga em círculos, acho que entendi o que o Otto queria dizer com “ciranda de maluco”.

Fellini foi interessante, a banda toda reunida só pra festa, apresentada como "uma das bandas preferidas de Chico Science", o que funciona como espécie de livre-conduto por lá. A galera sabia de cor as letras, tô pra dizer até mais que o Thomas Pappon.

Pedro Luis e a Parede foram recebidos como primos distantes, mas muito queridos, e foram muito bem. Na porta do backstage encontrei um sul-africano que, mesmo sem falar chongas de português, conseguiu comprar o CD lá mesmo – 10 real! – e disse que não ia arredar dali sem um autógrafo.

Show final da segunda noite, Via Sat (mais uma demonstração de força da cena: as bandas locais é que fechavam as noites). No começo até me deu uma certa pena dos caras, pela missão ingrata de entrar depois do PLAP, mas a última coisa que eles precisavam era da minha pena. A banda é um poder só, hip hop + peso + temperinho local, pronta pra estourar, escangalhou, e lá me toquei eu pra procurar o CD dos caras na banquinha que tinha em frente ao bar “Pina de Copacabana”.

A terceira noite era a mais ruts de todas. Vi o show do Ortinho, ex-vocal do Querosene Jacaré e achei legal, ainda que meio incipiente. Destaque pro pandeiro de Sérgio Cassiano, que segurou a batida sozinho o tempo todo (nessa terra todo mundo destrói no pandeiro, chega a ser ridículo).

Também vi Lia do Itamaracá, que tem trocentos anos de carreira e só agora, graças à valorização do folclore que rolou pós-manguebit, é que tá lançando seu primeiro CD. Ela canta à antiga um troço chamado ciranda, hipnótico, percussão e metais, e que curiosamente botou todo mundo dançando em rodinhas e rodões. Trip hop do século passado.

Mas pra mim o grande absurdo foi o tal de Encontro dos Mestres do Maracatu. Pausa para um momento Discovery Channel: existem 2 tipos de maracatu, o rural ou de baque solto, em que o ritmo é um rufar constante de tarol e timbres mais agudos e metálicos (manja “Maracatu Atômico” do CSNZ? É aquilo.) e o nação ou de baque virado, com uma batida mais grave e complexa, de dar nó em DJ de jungle. O RecBeat promoveu o encontro destes maracatus, levando pro palco e dando um status mais popstar pra uma manifestação cultural que acontece geralmente na rua. Pra não me alongar na descrição, só vou contar uma coisinha: a apresentação começou com o Maracatu Nação Estrela Brilhante, do qual participam músicos do Mestre Ambrósio e Cascabulho. Logo após uma introdução linda só com uns vocais bem nordestinos, o couro comeu solto nos tambores, e foi impossível não lembrar de Chico. Aí eu me viro pra comentar isso com a repórter do meu lado e percebo que a mina tá literalmente lavada em lágrimas, juro.

E fora o que eu vi, teve também o que me contaram: Mestre Ambrósio e DJ Dolores surpreenderam com dois dos melhores shows de todo o festival, o Ira! também arrebentou, mas o show foi meio tumultuado porque a galera ficava subindo tipo 20 de cada vez, pra abraçar os caras, que não tocavam lá há 8 anos. Stella Campos foi legal, bom CD também. Outros que foram muito bem – fechando a última noite, que responsa pouca é bobagem - foram os caras do Cordel do Fogo Encantado. Quem viu os caras roubarem legal os shows do Otto e mundo livre no Opinião, ano passado, sabe que ali sobra café no bule.

Bom, basicamente era isso. A cena e a cidade fervem, só no morro do Alto José do Pinho, base dos Devotos, existem hoje 78 bandas em atividade, a maioria desenvolvendo trabalhos comunitários em paralelo. O engraçado é que, pra quem é recifense, tudo isso parece muito normal. Teve até uns caras com quem eu conversei que criticaram uma eventual padronização do manguebit e, vejam só essa, reclamaram que a cidade só tem 2 grandes festivais, o Abril Pro Rock e o RecBeat. Deu vontade de trazer eles pro Planeta Atlântida.

O certo é que, descontados alguns focos de fogueiras das vaidades aqui e ali e a pressão das gravadoras, desesperadas por um novo Chico Science - como se a estas alturas isso ainda fosse preciso - saí de lá rindo sozinho por ter visto alguns dos melhores shows da minha vida e uma cena forte, já na sua terceira ou quarta geração de bandas, fora o carnaval.

Cena final: já longe do RecBeat, indo pro aeroporto, passo perto de um sistema de som no meio da rua que, entre um axé e outro, toca "A Praieira". Todo mundo em volta canta junto, com orgulho.

No avião eu já sentia saudades até do mijo e da cerveja choca.
 

Marcelo Firpo é colaborador
da MangueNius em Porto Alegre