Sobre Elis Regina, Maria Rita, a Volkswagen e duas Kombi
Vídeo da Volkswagen unindo as cantoras Elis Regina e Maria Rita viraliza e provoca polêmica na web, por ter deturpado a música de Belchior
Emoção e revolta. Esses foram os sentimentos que a Volkswagen provocou nos brasileiros com o filme comemorativo de seus 70 anos no país. Nele, a eterna Elis Regina e sua filha Maria Rita fazem um dueto dirigindo o Fusca, a Kombi original e a Kombi elétrica ID. Buzz.
Dirigindo e cantando "Como Nossos Pais", de Belchior, mãe e filha são unidas no passado e no presente por uma Inteligência Artificial (IA). Lindo, emocionante? Sim, mas não para todos e todas. Um novo Fla-Flu se estabeleceu na internet brasileira.
A Volkswagen quer voltar a ser uma marca emocional e acertou em cheio com esse filme promocional. Mas ao mesmo tempo, ao mexer com Elis e Belchior, abriu a tampa de um esgoto profundo, de onde saíram lembranças de um passado colaborativo com o nazismo na Alemanha e com a ditadura no Brasil.
Os nervos ficaram à flor da pele. Logo se estabeleceu um novo Fla-Flu nacional, as opiniões se dividiram. De um lado, a emoção de ver uma IA criando um encontro que a vida real nunca permitiu: duas notáveis cantoras, Elis Regina e Maria Rita, cantando juntas. De outro, a crítica por um vídeo que talvez Elis não aprovasse.
"Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo tudo tudo que fizemos, nós ainda somos os mesmo e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais", cantam. Elis, ao volante da Kombi a combustão, a Velha Senhora, primeiro carro fabricado pela Volkswagen do Brasil, de 1957 a 2013. Maria Rita, ao volante da Kombi elétrica ID. Buzz, uma releitura espetacular da clássica minivan, que começará a ser vendida no país.
“Ninguém se incomodou de usarem uma música sobre MUDAR e NÃO FAZER igual os nossos pais para… vender carro?” (Amanda Audi, Twitter)
“tava achando o comercial uma fofurice até chegar nesta rede fiduma e ser obrigada a pensar e não só me emocionar agora, quando chegar em casa às 11 da noite depois de trabalhar feito doida, ainda vou ter que dar discurso quando meu marido vier todo animado falando do comercial” (Coisa Nenhuma, Twitter)
“Acho meio arrogante presumir q, se viva, ela ainda teria a mesma postura revolucionária. Os tempos eram outros, a idade, a redemocratização mudou muitos. É ótimo um debate ético sobre direitos póstumos sobre imagem, obra, voz, IA, mas sem achar q tem mais direito q a filha dela.” (Jessica Juhas, Twitter)
“A Volkswagen tem dois lados na história: um tenebroso pela sua fundação associada ao nazismo e apoio à ditaduras; o outro lado é o popular, pois é marca dos veículos mais memoráveis da cultura popular. Eu sinceramente não consigo me posicionar com relação à empresa.” (Fernando Carvalho, Twitter)
“Gente, mas é possível achar um comercial bonito e repudiar a ditadura, viu!? Repudiar o fato de que marcas famosas a apoiaram com cumplicidade! Gostei deste comercial, assim como gosto de alguns do Itaú, leio alguns (poucos) colunistas da Folha, já comi arroz Prato Fino, etc…” (Karine, Twitter)
“Provavelmente a agência de publicidade contratada tem funcionários que não são, sei lá, professores de história ou militantes progressistas no nível esperado, né? Mas com um pouco de licença poética e boa vontade com a contradição entre a letra e o filme, vai, a peça é linda” (Vino, Twitter)
“Só q a propria Elis cantou em um evento de militares. Por pressão ou não e foi mto cobrada por isso pelos artistas. Depois tbm pediu desculpas. Nada vejo de mal nesse comercial. Acho lindo, poderia ser de qualquer montadora, a agência está de parabéns. Cultura, arte e bom gosto!” (Madame Bovary, Twitter)
Bem, é impossível saber o que Elis Regina acharia dessa ideia. Na época da ditadura, Elis dizia que não ia a show patrocinado por patrão. Hoje se negaria a tal filme?
Maria Rita, por óbvio, acha que não e curtiu a ideia de cantar um dos maiores sucessos da mãe – e quem mais poderia interpretar Elis tão bem a não ser Maria Rita? Basta ouvi-la para que a voz de Elis entre junto com a sua em nossos ouvidos e corações. [veja abaixo o belo e polêmico vídeo da VW]
Quanto à música de Belchior, que fala do conflito de gerações e foi descaracterizada de seu sentido original, cabe dizer que qualquer obra – uma vez que se torna pública – deixa de pertencer unicamente ao autor. Cada pessoa que ouve uma música, lê um texto ou ouve um filme pode dar uma interpretação diferente à obra.
Não quero aqui ser o árbitro deste novo Fla-Flu nacional. Seria pretencioso. Quero apenas registrar esse momento de forte debate, que no mínimo mostra à indústria automobilística que a sociedade brasileira está muito atenta às suas realizações. Para o bem e para o mal.
A Volkswagen, por sua vez, não é a mesma empresa que colaborou com o nazismo e com a ditadura. Não é sequer a mesma empresa que protagonizou o escândalo do dieselgate.
A Volkswagen atual está muito comprometida com as boas causas, como inclusão, diversidade e ecologia. Como toda empresa capitalista, entretanto, ela usa sua força econômica e a cultura local para vender automóveis, obter lucros e retribuir à sociedade do jeito que sabe: criando e mantendo empregos, patrocinando iniciativas culturais e entregando diferentes formas de mobilidade.
Para o bem ou para o mal, a Volkswagen e a Kombi uniram Elis Regina e Maria Rita. Agora é amar ou odiar. Afinal, tudo no Brasil parece acabar em Fla-Flu.