332 vítimas em 312 tiroteios no Rio em 2022: nenhuma se chama Roberto Jefferson
Risco de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior ao de uma pessoa branca
A troca de tiros entre o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) e a Polícia Federal (PF) na tarde de domingo (23) reacendeu a discussão sobre privilégios de classe e raça durante as operações dos agentes. Segundo a PF, o tiroteio começou depois que o aliado do presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL) abriu fogo contra os oficiais que cumpriam o mandado de prisão expedido pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Após 8 horas de espera, ele se entregou.
O ex-parlamentar resistiu à prisão, disparando 50 tiros de fuzil e três granadas contra os policiais que cumpriam a ordem judicial. Desde janeiro, Roberto Jefferson cumpria prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica na cidade de Comendador Levy Gasparian, no interior do estado do Rio de Janeiro.
Segundo o inquérito, o ex-deputado estava preso por cometer incitação aos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional e na lei que tipifica crimes raciais. Contudo, o presidente de honra do PTB descumpriu várias medidas, como usar redes sociais, dar orientações aos dirigentes do partido e receber visitas em casa.
O estopim para que o ministro Alexandre de Moraes determinasse que a prisão domiciliar de Roberto Jefferson fosse revogada aconteceu depois que ele gravou um vídeo xingando a ministra do STF Cármen Lúcia com ataques misóginos. No registro, ele ofende a magistrada por discordar de um voto dela ao fazer um julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ao chegarem no local, os três policiais federais foram recebidos a tiros, mesmo o ex-parlamentar não tendo direito ao porte de arma de fogo. A agente Karina Oliveira teve ferimentos no rosto e na coxa e teve estilhaços de granada encontrados no quadril. Ao tentar socorrer a colega de equipe, o delegado Marcelo Villela foi ferido na cabeça por Roberto Jefferson. O laudo médico aponta que possíveis estilhaços ficaram alojados em seu crânio.
A PF, então, solicitou reforços. A Polícia Militar e o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) foram acionados. Em nenhum momento as polícias invadiram a casa de Roberto Jefferson, mesmo ele tendo reagido diversas vezes contra as autoridades com tiros. Para Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado, que reúne dados sobre a violência armada no Rio, Recife e Salvador, o tratamento privilegiado dado pelas polícias a Roberto Jefferson escancara o estereótipo de criminalização que atribuem a periferia brasileira.
"Choca a diferença na conduta policial com Roberto Jefferson, um ex-deputado condenado, em prisão domiciliar, em comparação com o que vemos durante as operações nas favelas e nas ruas, como foi com o Givanildo, morto asfixiado numa câmara de gás dentro de uma viatura da PRF [Polícia Rodoviária Federal]. As favelas carregam historicamente um estigma de criminalização. As pessoas são tratadas como suspeitas antes mesmo de serem identificadas e isso reflete na forma como os agentes chegam nessas áreas, com truculência, com mandados de busca e apreensão coletivos, que colocam todos os lares sob suspeita. Em 2019, essa conduta foi finalmente considerada inconstitucional. Há dois pesos e duas medidas".
Enquanto os agentes esperavam que Roberto Jefferson se rendesse, apoiadores de Bolsonaro foram ao local onde acontecia a operação e hostilizaram a imprensa. Um repórter cinematográfico foi agredido e teve seu equipamento quebrado. O presidente, inclusive, determinou que o ministro da Justiça, Anderson Torres, fosse ao local para acompanhar e mediar a negociação entre o condenado e as polícias.
Padre Kelmon (PTB), candidato à presidência derrotado no 1º turno, também esteve presente. Após 8 horas de resistência e desrespeito à ordem do STF, Roberto Jefferson se entregou no início da noite, por volta das 19h. Logo em seguida, os agentes federais fizeram uma vistoria para tentar achar armas e outros objetos suspeitos que poderiam ser apreendidos.
De acordo com a edição 2021 do Atlas da Violência, os negros representam 77% das vítimas de homicídios no Brasil, com uma taxa de 29,2 por 100 mil habitantes. Entre os não negros, esse índice cai bruscamente para 11,2 para cada 100 mil. Isso significa dizer que o risco de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior ao de uma pessoa branca. Cecília Olliveira ressalta que o Estado prioriza mais os confrontos entre os agentes e a população do que as soluções estratégicas.
"Os dados [do Atlas da Violência] revelam que, enquanto o número de mortes entre a população não-negra caiu 33%, o número de pessoas negras mortas aumentou 1,6%. O que vemos é que são essas pessoas que mais estão sendo afetadas pela dinâmica dos conflitos dentro das favelas, uma vez que o Estado prioriza que seus agentes de segurança optem pela lógica dos confrontos, no lugar de soluções que visem maior estratégia e inteligência", pontua.
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Vidas ou estatísticas?
De acordo com estatísticas feitas pelo Instituto Fogo Cruzado, nos 100 primeiros dias do ano, foram registrados 312 tiroteios durante ações e operações policiais em 2022 - 163 a menos do que 2021, quando o estudo registrou 475. Apesar da queda, o número deste ano ainda representa 32% do total geral de tiros contabilizados no período na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que foi de 966. O levantamento registrou ainda o número atingidos pelos tiroteios. Durante as operações policiais nesse intervalo, 332 pessoas foram baleadas: 151 mortas e 181 feridas.
Kevin Lucas dos Santos Silva, de 6 anos, foi uma das vítimas. Ele morreu na primeria semana de janeiro ao ser atingido no tórax no Morro da Torre, no bairro Inconfidência, em Queimados, na Baixada Fluminense. Gabriela Aristides, de 13 anos; e Ludmila Teles, de 9 anos, ficaram feridas no tiroteio, que, segundo policiais do 24º Batalhão da Polícia Militar (BPM), aconteceu depois que foram atacados durante um patrulhamento de rotina. Os moradores, no entanto, contestam a versão. Testemunhas afirmam que não havia operação naquela tarde e que os policiais já chegaram atirando no local.
O mesmo aconteceu com Cauã da Silva dos Santos, 17 anos, em abril. O adolescente saía de um evento infantil na comunidade do Dourado, em Cordovil, na Zona Norte do Rio, quando foi baleado no peito na frente da própria família por um policial militar. Parentes do adolescente afirmam que os PMs jogaram o corpo do garoto no rio. Ele chegou a ser resgatado pela família e socorrido, mas chegou morto no hospital. Segundo a Agência Brasil, a versão dos agentes do 16º BPM é que eles faziam patrulhamento quando foram atacados. Moradores disseram que não havia operação ou troca de tiros naquele momento.
"Enquanto a segurança pública nos grandes centros metropolitanos for tratada com negacionismo, o que veremos é um elevado número de vítimas dessas ações policiais, incluindo Kathlens, João Pedros e Agathas", analisa Cecília Olliveira, fazenda menção a outras vítimas de ações policiais nas favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O mesmo relatório mostra também o número de mortes policiais durante tiroteios no Rio de Janeiro. Considerando os mesmos 100 primeiros dias de 2022, 30 agentes da polícia foram baleados: 15 morreram e 15 ficaram feridos. Dentre as polícias, a Militar foi a que foi mais afetada, com 27 atingidos: 13 mortos e 14 feridos. Se comparados os números durante as trocas de tiros no Rio, é possível observar que o índice de morte dos agentes representa apenas 10% da morte de civis. Isto é, a população - sobretudo a negra, de periferia - continua morrendo significativamente pelas mãos do Estado.
"Quando uma questão chega a ser problema de segurança, já houve muitas falhas. Grande parte da ação das polícias em áreas pobres é referente a tráfico de drogas e armas e ação de milícias e grupos de extermínio. Drogas e armas já cruzaram as fronteiras e portos, transitaram por rodoviais federais e estaduais, cruzaram vários estados quando chegam a favelas. Quantas falhas temos até aqui? A investigação da cadeia do tráfico, especialmente em seu braço econômico, tem sido insipiente e ineficaz", questiona Cecília.
"O enfrentamento à milícia, composta na maioria por agentes do estado que estão na folha de pagamento do governo estadual, é uma vergonha. Os dados do Mapa dos Grupos do Rio que lançamos recentemente mostram que as milícias cresceram quase 400%. Isso não é falta de preparo pura e simplesmente. É especialmente falta de compromisso político com a resolução do problema, de vários órgãos e instituições", complementa.
Chacinas policiais
Em um novo e inédito levantamento divulgado em setembro, o Fogo Cruzado chegou a conclusão que mais de 1 mil pessoas foram mortas em chacinas policiais no Grande Rio desde 2016. No total, 250 ações e operações policiais terminaram com três ou mais mortos. O estudo revela ainda que três da operações mais letais da história do Rio aconteceram durante o governo de Cláudio Castro (PL), em um intervalo inferior a dois anos.
"Uma operação no Jacarezinho terminou com 27 civis e um policial mortos no dia 6 de maio de 2021. Em 2022, no dia 24 de maio, uma operação policial na Vila Cruzeiro deixou 23 mortos. E também este ano, uma operação no Complexo do Alemão deixou 16 civis e um policial mortos no dia 21 de julho", diz o relatório.
Para Cecília de Olliveira, é necessário medidas mais efetivas para combater essa chacina policial que acontece nas favelas. "A segurança pública precisa ser tratada com responsabilidade. É preciso que haja um plano para que a letalidade policial diminua. Um plano de segurança pública precisa ter diretrizes e metas claras sobre quais os principais objetivos no enfrentamento à criminalidade e à violência. Soluções existem, o que falta é interesse público", finaliza.
Roberto Jefferson foi indiciado pela PF por quatro tentativas de homicídio. Duas relacionadas à policial Karina Oliveira e ao delegado Marcelo Vilella e duas referentes a dois agentes da polícia que estavam próximos de um carro alvejado por tiros de fuzil, mas não chegaram a ser atingidos.
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