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90% dos abortos atendidos pelo SUS são feitos com procedimento ultrapassado

Todos os anos, mais de 100 mil pessoas no Brasil, em situação de abortamento, passam por cirurgia que não é recomendada pela OMS

21 set 2022 - 17h09
(atualizado às 19h23)
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Quase 500 mulheres morreram nos últimos dez anos por conta da curetagem uterina pós-aborto
Quase 500 mulheres morreram nos últimos dez anos por conta da curetagem uterina pós-aborto
Foto: AzMina

Em 2021, 151 mil mulheres foram internadas no Brasil por situações de aborto (espontâneo, induzido, incompleto ou legal) e levadas a fazer uma curetagem uterina, procedimento que já é considerado defasado há pelo menos 10 anos no mundo e fortemente desaconselhado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2012. “Um método obsoleto de abortamento cirúrgico”, diz a OMS, indicando que a curetagem deveria ser exceção e usada somente em abortos acima de 14 semanas de gestação. É que ela traz mais riscos como perfuração uterina, hemorragia, infecção e morte. 

Manoela Fontenelle, 34 anos, teve um aborto espontâneo com 12 semanas de gestação e, ao procurar um médico, foi informada de que deveria fazer a curetagem. O procedimento foi tranquilo, assim como os primeiros dias de recuperação. Mas ela desenvolveu, em seguida, algumas aderências, que bloquearam a passagem da trompa direita, e também uma adenomiose (crescimento do tecido endometrial no músculo do útero, que provoca dor). “Fui em médicas que deixaram bem claro que a manipulação uterina favorece o aparecimento de problemas”, contou Manoela. 

Como ela, na última década, dois milhões de brasileiras foram submetidas a curetagem no Sistema Único de Saúde (SUS), segundo dados do Ministério da Saúde – DataSus (Sistema de Informações Hospitalares). Quase 500 mulheres morreram nos últimos dez anos nessa cirurgia. 

No Brasil, o aborto é permitido somente em casos de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Além desses, chegam aos hospitais mulheres que sofrem abortos espontâneos e as que tentam interromper a gravidez clandestinamente e precisam de atendimento médico por aborto retido ou incompleto.

Foto: AzMina
Foto: AzMina
Foto: AzMina

Em todos esses casos, o recomendado pela OMS e por especialistas como mais seguro é substituir a curetagem pela aspiração manual intra-uterina (AMIU) ou mesmo por métodos farmacológicos, como o uso combinado de mifepristone e misoprostol. Esse último tem eficácia de 98% – dado apontado pelo próprio documento da OMS -, principalmente se a interrupção ocorrer até 14 semanas de gestação. “Cerca de 85% dos abortos são nesse período e 67% ocorrem antes de oito semanas”, destaca o ginecologista obstetra Cristião Rosas, referência no assunto. 

A mifepristone não está disponível no Brasil, apesar de constar na lista de medicamentos essenciais da OMS. O misoprostol é o único que se tem acesso aqui, no entanto, ele é classificado como de “uso hospitalar”. A questão é que o aborto medicamentoso pode levar horas ou até dias para ser concluído, o que significaria manter a paciente internada todo esse tempo na unidade hospitalar. O ideal seria a mulher poder levar os comprimidos para finalizar o procedimento em casa, como é feito em outros países.

Já o Aspirador Intra-uterino (AMIU) está em falta em maternidades de referência em saúde da mulher, conforme apurou a reportagem. Em 2021, foram somente 16 mil abortos tratados por aspiração – 10% do total, de acordo com informações obtidas no DataSus. As 151 mil internações por curetagem pós-abortamento representou 90% dos casos que chegaram às unidades hospitalares, e resultaram em 50 mortes. 

O custo ao SUS pelas curetagens uterinas foi de R$ 34 milhões, e nessa conta não estariam incluídos os gastos com leitos e outras complicações do procedimento. As outras opções para os casos de abortamento, consideradas mais seguras, são também menos onerosas.  

“O QUE SE FAZ AQUI É UM CRIME SANITÁRIO” 

É difícil identificar quantas dessas curetagens foram realizadas em pacientes que tomaram o misoprostol sozinhas em casa, por causa do contexto de ilegalidade. Com medo e sem informação segura, muitas mulheres procuram o hospital quando começam a sangrar, depois de tentar interromper a gravidez clandestinamente.

O tabu e o preconceito geral em torno do tema no Brasil impedem que se escolham e se usem métodos seguros. Isso faz com que toda pessoa que sofra um aborto no início de uma gravidez – espontâneo ou provocado – acabe tendo o direito à saúde violado. São milhares de mulheres todos os anos, já que a chance de uma gravidez não progredir é de até 20% – um evento possível na vida reprodutiva, assim como o são a gestação, o parto e o nascimento. 

“É como se não existisse o aborto entre as mulheres brasileiras. Isso que se faz aqui é um crime sanitário, mas eu não consigo convencer as autoridades”. A fala é de Cristião Rosas, que há mais de 20 anos tenta explicar o óbvio no Brasil sobre abortamento seguro, direitos sexuais e reprodutivos. Ele lidera aqui o grupo Global Doctors For Choice (Rede Médica pelo Direito de Decidir). Já visitou outros países, viu como são tratadas as mulheres e o que centenas de estudos comprovam. 

Foto: AzMina

A maioria dos abortos, sobretudo no primeiro trimestre gestacional, poderia ser resolvida com remédios e em ambiente domiciliar. É o que mostram evidências científicas, falas dos principais pesquisadores e médicos do mundo e organizações de saúde. “Essas mulheres sequer deveriam estar internadas pra tratar um aborto incompleto. É um gasto público desnecessário e fora das melhores práticas”, afirmou Cristião. 

Em março (2022), a OMS publicou uma diretriz atualizada sobre cuidados no aborto. Voltou a não aconselhar a curetagem, recomendando, pela primeira vez, o abortamento por telemedicina, com misoprostol e mifepristone. Indicou ainda que o procedimento pode ser feito por outros profissionais de saúde, não só médico, demonstrando a segurança e eficácia do método medicamentoso. 

A meta da OMS com esse documento é ajudar a prevenir cerca de 25 milhões de intervenções inseguras em todo o mundo. Conforme a organização, anualmente, 39 mil mulheres morrem por causa de complicações em abortos inseguros.

MATERIAL PARA AMIU ESTÁ EM FALTA

A Rede Médica pelo Direito de Decidir obteve informações de que há ausência do material usado para fazer a aspiração manual intra-uterina (AMIU) em hospitais de várias partes do Brasil, e, em alguns, falta também o misoprostol. Os relatos são de que a escassez em certas unidades já ultrapassa um ano e vem se intensificando. 

“Nós estamos diante de uma situação que é muito grave do ponto de vista dos Direitos Humanos porque o misoprostol é um medicamento obrigatório nas maternidades, porém indisponível”, afirmou Cristião. O Ministério da Saúde (MS) compra e repassa aos estados. Procuramos o órgão para saber sobre o fornecimento de AMIU e medicações, mas não obtivemos respostas. 

A reportagem apurou, via pedidos de Lei de Acesso à Informação (entre abril e julho deste ano), que o Ministério dobrou a compra de comprimidos de misoprostol em 2021 – foram cerca de 2 milhões, sendo que nos dez anos anteriores a compra nunca passou de 1 milhão de comprimidos anuais. A pasta, porém, não informou sobre a distribuição dessas medicações às secretarias estaduais no ano passado, afirmando que o dado estaria sob sigilo. 

Ligamos e enviamos e-mails para dezenas de hospitais que fazem interrupção legal e secretarias de saúde para obter respostas sobre o acesso ao misoprostol fornecido pelo Ministério. Formalmente, por meio de assessorias de imprensa, nenhum comunicou dificuldades com as realizações de aborto, o que vai na contramão do que foi dito à reportagem por profissionais que atuam em alguns desses hospitais. 

“Recebíamos AMIU do Ministério da Saúde, mas já tem mais de um ano que não temos e estamos com problemas com fornecedores”, afirmou um profissional de saúde que não podia ser identificado. Cristião Rosas ressalta que vivemos um momento no país em que os profissionais estão sendo ameaçados, processados e com medo de falar. 

SEM INTERESSE, NEM TREINAMENTO

Diante da escassez de misoprostol e AMIU, resta aos médicos brasileiros fazer a curetagem. Mas o problema não é só a ausência do material, falta também treinamento para usar a técnica de aspiração manual, que é simples, mas requer aprendizado. 

“Ainda estamos no processo de falar mais sobre o método, mas muitas maternidades nem tem o AMIU, ou é fornecido muito pouco”, relatou o obstetra pernambucano Olímpio Moraes, referência em aborto legal no estado. O seu colega Cristião Rosas acrescenta que não houve movimentos para reduzir de fato o número de curetagens no Brasil. “Nada que é referente à saúde da mulher é prioridade aqui.”

A médica Esther Vilela, que foi coordenadora-geral de Saúde das Mulheres do Ministério da Saúde, avalia que o quadro piorou com a Covid-19, tornando-se assunto ainda menos relevante. “Fez curetagem? A mulher tá viva, qual o problema?”, fala ela sobre como pensam muitas autoridades.

Mesmo dentro da área da mulher, seja em nível federal e estadual, não há abertura para falar sobre o assunto, como afirma a coordenadora de enfrentamento à violência doméstica no estado do Piauí, Mariana Carvalho. “É algo visto como problema de saúde íntima, não de saúde pública.” 

A opinião de Esther é que “se você não ensina novas práticas, os novos profissionais vão reproduzir práticas antigas.” Ela cita o exemplo do Distrito Federal, que é um dos que mais fazem AMIU porque havia um médico que propagava e ensinava a prática na residência. “A gente tem que ensinar uma nova obstetrícia baseada em evidências e respeito”, considera. 

O SERVIÇO ESPECIALIZADO

Nos serviços de aborto legal, cerca de 40% das unidades usam mais a curetagem como método cirúrgico para gestações de primeiro trimestre. Outros 40%, o AMIU. A informação vem de profissionais que atendem nos hospitais de referência no Brasil, que criaram um grupo em um aplicativo de mensagens durante a pandemia para trocar informações, e traçaram o perfil dos serviços brasileiros ali representados. Muitos, então, seguem mantendo um procedimento desaconselhado pela OMS e mais perigoso para as mulheres.

Entre as 167 mil mulheres que trataram aborto no SUS no ano passado (2021), cerca de 1.600 (menos de 1%) eram casos de interrupção legal (prevista em três casos: estupro, risco de morte da mulher e anencefalia). Não dá pra saber quais dos milhares restantes foram espontâneos ou provocados. Todo ele é relegado ao obscuro, à exceção, e não é entendido como questão de saúde pública.  

Foto: AzMina
Foto: AzMina

JULGADAS EM QUALQUER CASO

Além de ficarem mais tempo em alas junto com outras gestantes e bebês, pacientes brasileiras são julgadas pela equipe médica hospitalar quando internam para fazer a curetagem, tendo sofrido ou induzido um aborto. A discriminação se intensifica dependendo de como elas chegam e se portam, sendo pior se estiverem desacompanhadas – de um homem. 

Luciene Ozarias teve um aborto espontâneo na sétima semana de uma gestação planejada, e foi sozinha para um hospital em Belo Horizonte receber atendimento, porque seu marido estava trabalhando. Triste com a perda, ela ainda foi maltratada pela equipe de atendimento que especulou que Luciene teria provocado a interrupção.

Amália*, da mesma cidade, adquiriu de maneira clandestina o medicamento para interromper uma gravidez indesejada, com 9 semanas. Após tomar os comprimidos, sem ter orientações seguras, Amália foi ao hospital com medo de não ter dado certo. Ela não falou nada sobre ter provocado o aborto, mas também sentiu os olhares de preconceito. E soube depois que a médica explicou aos residentes, diante dela anestesiada na maca, que aquele seria um caso “típico” de aborto autônomo. 

Luciene e Amália estavam apreensivas e sofrendo, mas ambas não se sentiram acolhidas na unidade de saúde, e foram submetidas à curetagem, precisando aguardar junto com mães recém-paridas.

*Nome fictício

Colaboraram Natália Sousa, Bárbara Libório e Érika Artmann 

Clique aqui e acesse o link da reportagem original.

AzMina
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