A educação inclusiva não admite retorno
Artigo de Maria Teresa Mantoan (LEPED/UNICAMP) e José Eduardo Lanuti (NEPI/UFMS), exclusivo para o blog Vencer Limites.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEEPEI (BRASIL, 2008) esteve em perigo de ser descaracterizada, em 2018, e até mesmo revogada, em 2020, pelo Decreto 10.502 que previa a volta das escolas especiais para alguns alunos.
Apesar dessas tentativas de "atualizá-la" e de interpretações distorcidas de suas diretrizes, a PNEEPEI sobreviveu e continua vigente, com o apoio de famílias e profissionais que sabem o quanto ela é importante em espaços escolares que pretendem ser verdadeiramente inclusivos. Sua concepção e orientações continuam garantidas por conquistas de ordem jurídica e avanços educacionais alinhados a marcos legais nacionais e internacionais dos quais o Brasil é signatário.
O atual governo aguarda a retomada da PNEEPEI. Não foi por acaso que o Presidente Lula, em sua posse no dia 01 de janeiro de 2023, revogou o Decreto 10502 e, em seu primeiro dia de governo, instituiu a volta da PNEEPEI, como foi idealizada e firmada em 2008, como uma das políticas educacionais brasileiras mais ousadas dos últimos tempos. Seu renascimento não admitirá quaisquer mudanças, para que não sejam descaracterizados: seu desenho, particularidades e bases teórico-filosóficas.
Nossas escolas, em todos os seus níveis (básico e superior), devem ser inclusivas por força de nossa Constituição e da legislação educacional brasileira. Nosso ensino escolar é obrigatório dos 04 aos 17 anos, unicamente em escolas comuns! A Educação Especial é uma modalidade complementar/suplementar à formação dos estudantes que constituem seu público-alvo: pessoas com deficiência; com transtornos do espectro do autismo e com altas habilidades/ superdotação. Como tal, não substitui o ensino comum, seja em escolas especiais ou mesmo em escolas comuns, como ainda temos percebido em muitas redes de ensino.
As distorções na compreensão da PNEEPEI precisam ser resolvidas, porque têm causado muitos problemas. Entende-se equivocadamente, por exemplo, que a Sala de Recursos Multifuncionais (SRM) é um espaço segregado, quando na verdade é o ambiente de trabalho do professor do Atendimento Educacional Especializado (AEE) - serviço prestado pela Educação Especial nas escolas inclusivas. É nesse local que, no contraturno, estudantes podem, por exemplo, aprender Braille, a se comunicar por meio da Comunicação Suplementar e Alternativa (CSA), a se locomover pela escola com uso de bengalas, mapas táteis etc - para que consigam ter acesso pleno às atividades e conteúdos desenvolvidos no ensino comum.
Segundo a PNEEPEI, é na SRM que famílias de estudantes público-alvo da Educação Especial são recebidas para informar a escola sobre o desenvolvimento de seus filhos, atendidos por esse serviço; que o professor da sala comum pode trocar informações com o professor de AEE a respeito das barreiras físicas, comunicacionais, atitudinais e linguísticas que o meio escolar pode estar impondo a um estudante; que recursos de acessibilidade são produzidos e avaliados quanto à sua funcionalidade. Esse espaço é, portanto, fundamental e não pode ser confundido como uma sala de reforço escolar, como ocorre quando não se entende o que a PNEEPEI apregoa.
Os benefícios do AEE não se limitam à SRM, pois sua função é justamente criar condições para que os estudantes atendidos tenham acesso a tudo o que têm direito, em toda escola e na vida fora dela. O AEE acontece a partir de dois instrumentos: o Estudo de Caso e a elaboração do Plano de AEE. Tais estratégias (desconhecidas por grande parte das redes de ensino!) são personalizadas, e atendem as demandas individuais de um estudante, para que ele faça parte do coletivo, sem discriminações. Infelizmente, isso não ocorre em grande parte das escolas porque a PNEEPEI não vem sendo posta em prática.
As distorções da PNEEPEI fizeram com que o AEE ficasse à mercê de práticas que se apoiam no velho modelo da Educação Especial - que substituía a educação comum. Assim, nosso dever é reivindicar sua implementação, como foi originalmente pensada e apresentada.
Muitos são os que desconhecem (ou simplesmente ignoram) o fato de a Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva não ensinar conteúdos curriculares. Acreditam que o AEE pode acontecer inclusive durante o período de aula, na sala comum e esse entendimento tem feito com que muitos estagiários, professores e demais profissionais de apoio (sem preparo algum) sejam contratados para ensinar individualmente alguns alunos tidos como "problemáticos". Tal arranjo, simplista, faz com que professores mantenham seus modos usuais de ensinar, dedicando-se apenas àqueles "que acompanham as atividades", esquecendo-se que um professor é professor de TODOS! O ensino é, indiscutivelmente, um processo que se dá na coletividade, caso contrário, a escola perde seu sentido.
A falta de compreensão do que é a Educação Especial como modalidade de ensino, portanto, tem feito com que a exclusão aconteça inclusive dentro das salas de aula comuns, por meio de um ensino facilitado, adaptado, simplificado para os alunos público-alvo da Educação Especial. Ao perpassar todas as etapas e níveis de ensino básico e superior, a Educação Especial, nas orientações da PNEEPEI, tem conteúdos e funções que, embora favoreçam o acesso, permanência e participação, repetimos, não têm a ver com o ensino que ocorre em salas de aula.
Professores da escola comum, gestores escolares de todos os níveis, famílias e formadores de professores precisam chegar à verdadeira compreensão da PNEEPEI e da sua coerência com o que é próprio de nossas escolas básicas e superiores: serem verdadeiramente inclusivas!
A escola brasileira forma cidadãos para a vida pública e não admite mais que alguns sejam apartados em razão de comparações de níveis de aprendizagem e comportamentos com base em um modelo pré-definido. Temos, todos, de ser valorizados pelo que somos - seres singulares e dignos de respeito.
O Ministério da Educação tem, hoje, um momento ímpar de recuperar o que desfigurou a PNEEPEI e acompanhar, em todo o país, sua implementação, conforme foi arquitetada, segundo práticas e princípios que lhes são genuínos. Certamente, essa tarefa vai continuar demandando muitas batalhas, no entanto, os fundamentos da PNEEPEI são fortes o suficiente para rebater quaisquer ataques à sua essência e práticas vanguardistas, inovadoras, além de toda a sua sustentação jurídica inequívoca.
Mãos à obra!
Maria Teresa Eglér Mantoan, tmantoan@gmail.com, é doutora em Educação e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (LEPED).
José Eduardo de Oliveira Evangelista Lanuti, eduardo.lanuti@ufms.br, é doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e da graduação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em Três Lagoas, e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Inclusão (NEPI).