A serenidade que só o tempo ensina
De Cris Guerra a Cris Pàz, um rebatismo depois dos 50: não tenho mais tempo para ser guerra.
Em 2013, em meio a um turbilhão na vida pessoal, tive uma conversa séria com o tempo. Enquanto escrevia, parecia que alguém me soprava o texto inteiro aos ouvidos. De uma tacada só, mais sentindo que pensando, fiz um desabafo contundente no papel.
“Tudo o que lhe peço, Tempo, é que me salve do meu coração. Dessa entrega absurda de ir até o outro e me deixar sem mim. O que lhe peço, Tempo, é o caminho do meio. Aprender a receber antes de me entregar. Ver além. Peço que me devolva a mim mesma. Que eu me reconheça e me acolha. Me aqueça em meus buracos escuros e definitivamente me toque. Que eu saiba cuidar somente do que me cabe. E deixe ir. E deixe vir. Natural, inteira e suavemente. Que a vida me encontre distraída, sem a ânsia de buscar o que não sei. O que não vale. O que não é. O que lhe peço, Tempo, é a aceitação do tempo e da vida como ela é. Sei que ela me aguarda plena e legítima. Mostre a ela o caminho até mim. Enquanto isso, me adormeça em paz até que a verdade me alcance como um beijo. Tire de mim essa ânsia de ser feliz, inverta a ordem das coisas e assopre no ouvido da alegria o momento de me capturar sem volta. Que eu me aquiete na paz do merecimento, sem dar um passo ou um pio. Que apenas contemple. Que eu resista à tentação de correr para o que ainda não está pronto. Que eu me apronte para a surpresa de um dia simples. Que eu acorde como quem nasce. Amém.”
Nos anos seguintes, diversas vezes deparei com minha oração ao tempo transcrita nas redes, provando que está entre as lições mais difíceis essa de fazer as pazes com a ampulheta. Mas, interessante, é o próprio tempo quem acaba nos preparando um belo encontro com ele. É preciso paciência até que isso aconteça. Uma paciência que geralmente não temos.
Imediatista, controladora e ansiosa, precisei viver meio século para fazer as pazes com o tempo. Há muito não me vejo ocupada com a ansiedade de uma data que não chega. Estou tão absorvida por outros propósitos, que a data sempre chega, sem que haja tempo para criar expectativas.
O envelhecimento chega mais rápido que qualquer outra data, acredite. E até com ele tenho aprendido a conviver de maneira pacífica. O tempo me ensina a lidar com ele porque a cada dia eu o valorizo mais. Afinal, a cada dia ele se torna mais raro.
Um famoso estudo exemplifica essa relação entre o tempo e o nosso nível de satisfação. Chamada de Curva da Felicidade, a pesquisa investigou mais de 2 milhões de pessoas em 80 países e chegou a um padrão de felicidade no formato da letra U. Sua leitura revela que as pessoas são mais felizes no início da vida e esse índice vai diminuindo ao longo dos anos, chegando ao "fundo do poço" por volta dos 45 anos, para depois começar a subir novamente, provavelmente depois dos 50. O pesquisador do centro de estudos Brookings Institution, em Washington, Jonathan Rauch, escreveu sobre isso no livro The happiness curve: why life gets better after midlife (em tradução livre, "A curva da felicidade: por que a vida fica melhor depois da meia-idade"). As entrevistas do autor com diversos especialistas detectaram que nosso cérebro passa por mudanças à medida que envelhecemos, se concentrando cada vez menos na ambição e mais nas conexões pessoais. No Brasil, estudos da antropóloga Míriam Goldenberg sobre a felicidade das mulheres corrobora esses resultados globais.
“O tempo que tenho mal chega pra viver”, diz o Dorival Caymmi, numa carta memorável para o escritor Jorge Amado. Quebrar a cabeça pensar que, justamente quando nos resta menos tempo, passamos a ter uma relação mais equilibrada com a palavra. Nossa noção de tempo escasso nos faz ser mais cuidadosos na escolha de onde investi-lo. Em lugar de almejar ter tempo, cuidamos da excelência de seu uso. E assim aprendemos a dimensioná-lo, não pela quantidade de segundos, minutos, horas, mas pelo que fizemos dele.
Pode ter sido essa escassez que me fez voltar os olhos para o meu último sobrenome. Que honro, amo e me trouxe até aqui, mas que há alguns anos me colocou pensativa. Assumi o Guerra como nome profissional, sem jamais me atentar ao significado da palavra. Tinha orgulho dele, o que me colocava em uma postura ainda mais forte e combativa. Com o Guerra percorri mais de 30 anos no meio publicitário, 15 deles na internet. A palavra está na capa de oito livros publicados e centenas de palestras e conteúdos, feitos por uma Cris sempre pronta para a batalha, a postos, atenta e forte.
Não fujo à luta, é verdade, mas isso está longe de significar que gosto de estar constantemente em guerra. Como o tempo é bem maior que a gente, um dia a numerologia cabalista chegou até mim, num desses encontros que gostamos de chamar de coincidências. Um estudo profundo sobre meu nome foi o que faltava para eu tomar minha decisão.
Não tenho mais tempo para ser guerra. Mais do que tempo de sobra, quero um tempo preenchido de serenidade e calma. Para muitos, o susto é grande. Como assim, deixar para trás o que me trouxe até aqui, me desapegar do nome que me acompanha em 15 anos de trajetória pública? Para outros, é como se eu tivesse nascido com esse nome, Cris Pàz.
Não é disfarce nem negação, pelo cotrário. É um passo, uma evolução. Praticamente tudo o que precisamos se resume a essas três letras. Que estão longe de significar pasmaceira ou falta de atitude. Paz é conquista. Construção, maturidade, aprendizado. E a minha já vinha sendo construída, mesmo que eu não soubesse. Quando estava preparando este texto, fui pega de surpresa por uma frase que escrevi há algum tempo, mas da qual não me lembrava: “Travessias emocionais me ensinaram que centenas de quilômetros são mais fáceis de transpor do que distâncias misteriosas entre sofrimento e paz.”
Eu já sabia, mas não sabia que sabia: o contrário de sofrimento não é alegria, é paz. É preciso paciência para aprender a ter paciência. Paz seguida de ciência: calma e conhecimento. É preciso tempo para fazer as pazes com o tempo. Nunca é tarde para se tornar quem a gente realmente é.