"A sociedade usa as pessoas trans para fomentar medo na população", alerta psiquiatra
No Dia Nacional da Visibilidade das Pessoas Trans e Travestis, especialista em pessoas transgêneros fala sobre a saúde mental da comunidade
O perfil @psiquiatrans já entrega a missão de Camillo Miranda Lima. Entre imagens pessoais - como as lindas fotos de seu casamento com Ana Luísa, sua namorada de anos - e posts com esclarecimentos e/ou dicas, o psiquiatra que se identifica como pessoa transmasculina tem como prioridade trabalhar a saúde mental da população trans.
Médico pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e voluntário do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assistência à Pessoa Trans Professor Roberto Farina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Camillo atende em sua clínica particular e na UBS em Taboão da Serra (SP) pessoas de todas as identidades de gênero e orientações sexuais. Porém, tornou-se conhecido por, em certa medida, atender a partir do próprio lugar de fala e, assim, gerar identificação e acolhimento entre os pacientes trans.
Em entrevista ao Terra NÓS, ele comenta um pouco sobre a rotina em consultório e as impressões sobre a saúde mental trans no Brasil.
Muitas pessoas trans dizem que ser trans no Brasil é viver sob o constante medo de morrer. Você ouve com frequência isso no consultório?
O medo da morte é algo presente, sim, na vida das pessoas trans, mas em menor grau. O medo maior é o da violência, independentemente de como ela se manifesta: física, verbal ou sexual. Nós vivemos em uma sociedade transfóbica no país que mais mata pessoas trans no mundo. O medo da reação ao acessarmos determinados ambientes ou situações é muito presente, o tempo todo. Exemplos: na hora de usar o banheiro de um restaurante, começar em um emprego novo, iniciar um relacionamento afetivo. A reação do outro é um fator estressor, assim como a burocracia envolvendo documentos.
Quais as principais questões que ouve em consultório?
Existem diversos recortes dentro do universo trans. Entre as populações marginalizadas, as questões econômicas são as mais sensíveis. Há o receio de não conseguir emprego e meios de sustento e o difícil acesso ao mercado de trabalho que, infelizmente, ainda conduzem mulheres trans e travestis à prostituição. De modo geral, recebo muitos casos de depressão, alguns com risco de suicídio, problemas familiares e o estresse constante de não conseguir acesso aos cuidados de saúde, como a hormonização, ou de receber um atendimento com respeito em um hospital ou pronto-socorro.
Pessoas trans têm altos índices de depressão, ansiedade e transtorno bipolar. Quais as mudanças necessárias para combater esses males?
Coletivamente, poder contar com um governo que olhe para a gente e forneça políticas públicas que nos dêem atenção. Acho extremamente necessária também a criação de campanhas de conscientização da população geral sobre o que é ser uma pessoa trans. A sociedade, de modo geral, usa as pessoas trans para fomentar o medo na população. É o caso da fake news de que vamos dividir o banheiro com crianças, isso não existe. Quem não tem conhecimento sobre a nossa realidade, acaba desenvolvendo aversão. No campo individual, a psicoterapia ajuda no fortalecimento da própria identidade. Uma rede de apoio também é importante.
O momento de se assumir perante a família pode direcionar a qualidade da saúde mental na vida futura da pessoa trans?
Sim, o apoio familiar ou a falta dele tem um peso importantíssimo para a saúde mental. Segundo um levantamento da Antra [Associação Nacional de Travestis e Transexuais], a idade média em que pessoas trans são expulsas de casa quando a família não as aceita é de 12 anos de idade. Que futuro se pode esperar nessas condições? Completar o Ensino Médio é algo que faz toda a diferença para obter um trabalho. Sem emprego e sem ter o que comer, o resultado é a vulnerabilidade social e o risco de viver em um ambiente de violência. Mesmo nos casos em que não tem expulsão, mas a família é resistente, podem haver atrasos na maturidade emocional e no desenvolvimento como um todo.
O que falta à classe médica, de forma geral, para atender adequadamente a população trans?
Deixar de ser machista, patriarcal e parternalista e colocar os interesses e a autonomia dos pacientes em primeiro lugar. A medicina, em questões de gênero, ainda é conservadora e não acompanha as questões sociais.
As questões emocionais envolvendo a saúde mental de homens trans e mulheres trans são diferentes? Por quê?
Sim, existem especificidades. Como vivemos em uma sociedade machista, mulheres trans e travestis enfrentam mais situações de vulnerabilidades como violência física, prostituição, exclusão do mercado de trabalho. Os homens trans são mais invisiblizados, apagados ou vistos como "mulheres masculinas", ou seja, enfrentam questões identitárias. Também acabam enfrentando problemas no âmbito da saúde, principalmente quando precisam ir ao ginecologista. Já homens trans negros enfrentam também a dificuldade de passarem a ser vistos como homens negros num país racista em que as abordagens policiais costumam ser violentas.
Você fez ou faz terapia?
Faço e insisto para que os médicos residentes também façam. Cuidar da própria saúde mental é fundamental para o exercício profissional da psquiatra. Além disso, a experiencia de ser terapeutizado impacta e ajuda muito no atendimento de outras pessoas trans.
Em seu Instagram, você mantém diversas fotos antes de transicionar. Acha importante expor essa narrativa?
É uma questão muito individual. As pessoas trans têm o direito de quererem ou não expor fotos de infância ou adolescência. Vai de cada um. Aliás, isso independe de ser trans ou cis. Para mim, não é problema. Eu vivi tudo aquilo, são acontecimentos e memórias que fazem parte de quem eu sou. Mesmo passando por sofrimentos e problemas, sei que consegui lidar com tudo da maneira que eu conseguia naquela época. Não tenho que me punir por isso, tampouco tenho vergonha ou culpa. Não tenho nada para esconder, esse sou eu.