'Adolescência': especialista explica o que é manosfera, teoria 80/20 e como meninos caem em misoginia
Comunidades virtuais que difundem discursos misóginos e extremistas ganham força entre jovens descontentes
A série 'Adolescência' explora os desafios dos jovens em um mundo conectado, destacando a influência da internet na formação de masculinidades e os perigos da manosfera, que propaga misoginia e discursos de ódio entre meninos, segundo especialista.
A série Adolescência tem despertado debates intensos ao abordar com realismo os desafios enfrentados por jovens em um mundo cada vez mais conectado. Entre dilemas sobre identidade, aceitação e relacionamentos, um tema se destaca: a influência da internet na construção das masculinidades.
Ao retratar personagens que flertam com discursos misóginos e comunidades online que prometem respostas fáceis para frustrações juvenis, a produção levanta um alerta sobre um fenômeno crescente --o avanço da manosfera e sua capacidade de radicalizar meninos. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em gênero, Ana Weselovski explica os fatores que contribuem para esse fenômeno.
"Manosfera"
A manosfera é um fenômeno digital que reúne homens desiludidos com suas vidas afetivas e sociais, onde proliferam discursos que culpam as mulheres e o feminimos pelos desafios enfrentados.
“Pensar um fenômeno como a manosfera exige uma análise imbricada de muitos fatores”, aponta Weselovski. Um dos principais, segundo ela, está ligado ao contexto político e social recente. O aumento na adesão a esses grupos se deu em um momento histórico marcado por uma crise política e social, no qual vimos ganhar força no Brasil um movimento com características neofascistas, segundo a especialista.
"O fascismo surge para cooptar a insatisfação dos sujeitos e direcionar a um 'inimigo' que precisa ser combatido, protegendo em última instância as estruturas do sistema que vivemos. Esse inimigo costuma ser grupos minoritários, em especial as mulheres que, em momentos assim, são o primeiro grupo social a ser perseguido e ter seus direitos questionados."
Outro elemento importante para entender a manosfera é a influência da lógica neoliberal. Weselovski explica que esses grupos frequentemente incentivam a ideia de autoaperfeiçoamento como um investimento. “Em páginas relacionadas a red pill, me deparei com a recorrente ideia de investir em si mesmo, estar em constante aprimoramento. Percebi inclusive o uso da sigla VSM, que significa valor sexual de mercado, sendo comum ver esses sujeitos discorrer sobre como aumentar seu VSM”, analisa.
Esse pensamento leva à crença de que o sucesso nos relacionamentos depende unicamente do próprio esforço e de atributos como aparência e status financeiro, ignorando fatores estruturais e sociais.
O que é a teoria 80/20?
A chamada teoria 80/20 também circula com frequência nesses espaços. Essa tese sustenta que 80% das mulheres desejam apenas os 20% dos homens mais atraentes, enquanto os demais são ignorados ou rejeitados. Essa visão simplista das relações reforça um discurso de frustração e revolta, fortalecendo o ressentimento masculino.
“É preocupante a forma como uma 'teoria' dessas pode repercutir na mente de um jovem, pois faz com que projetem todas as suas frustrações nas mulheres. Ou seja, faz com que acreditem que se até então não conseguiram manter um relacionamento amoroso/sexual da forma como gostariam, isso não se deve por conta da sua falta de traquejo social, mas sim ao fato das mulheres serem seres interesseiras e superficiais", detalha.
Conteúdo red pill e violência
"O termo red pill vem de uma alusão ao filme Matrix (1999), no qual o protagonista Neo escolhe tomar a red pill e ver a dura realidade ao invés de viver em uma ilusão confortável. Neo é o herói do filme. O herói que luta contra um sistema que o explora", afirma Weseslovski.
Com isso, aqueles que decidiram "despertar" e ver a "realidade", se colocam como "revolucionários", porém, acabam por defender a retomada do poder em um contexto de subjugar mulheres. "Tudo isso ressoa muito na mente de um jovem ainda em plena construção de sua identidade."
"Qualquer nível de consumo desse tipo de conteúdo pode ser perigoso, pois molda a visão de jovens acerca das mulheres de uma forma muito pejorativa".
Conforme a psicóloga, aliado ao funcionamento dos algoritmos, que entregram mais conteúdos relacionados ao que já se consome, acaba por criar uma bolha que torna difícil perceber quando já se está indo longe demais.
Para combater discursos de ódio, Wesesloski aponta para o estabelecimento de um vínculo de confiança. "A adolescência é um período que costuma ser muito confuso e conturbado e, por isso mesmo, os jovens não podem ser deixados sozinhos para lidar com suas angústias".
Outro ponto essencial é de evitar o isolamento social, estimulando tempo de qualidade com amigos e família. "A internet e as redes sociais são uma boa ferramenta para o nosso dia-a-dia, mas também pode ser um lugar muito perigoso para um menor de idade sem supervisão".