Alessandra Korap: A indígena brasileira que ganhou o 'Nobel' do ambientalismo
A ativista se tornou uma liderança do povo munduruku e conseguiu evitar a ação de mineradoras no território que ela mora, que ainda não foi demarcado pelo governo brasileiro. Ao longo dos últimos anos, ela conviveu com ameaças e ataques.
As memórias de infância de Alessandra Korap estão intimamente ligadas com a sensação de liberdade.
"Tenho a lembrança de ser livre para tomar banho no rio, acompanhar os mais velhos na roça, colher as frutas e tirar cipó para fazer as roupas", relata.
"A minha sensação é a de que podíamos usufruir e brincar no rio, na floresta e até dentro de casa", diz ela.
Hoje, aos 38 anos, Korap é reconhecida nacional e internacionalmente como uma das principais lideranças indígenas da região que compreende a bacia do rio Tapajós, no Pará.
Atualmente, ela é a presidente da Associação Indígena Pariri, que dá suporte às comunidades que vivem nesse local.
Graças ao trabalho dela e de vários grupos, grandes empresas de mineração — como a Anglo American e a Vale — desistiram de projetos para exploração neste território indígena, que ainda não é oficialmente demarcado e reconhecido pelas autoridades brasileiras.
Entre tantas reuniões e protestos, Korap sofreu uma série de ataques e ameaças de morte. Num dos piores episódios, a casa dela foi invadida e vandalizada.
A atuação em prol do meio ambiente rendeu a ela o Prêmio Goldman de 2023, considerado um "Nobel verde", por homenagear e celebrar a história de pessoas que atuam em prol do meio ambiente e da preservação de recursos naturais.
Oferecido desde 1989 por uma fundação sediada em São Francisco, nos Estados Unidos, o reconhecimento só havia sido dado a outros três brasileiros até o momento: Carlos Alberto Ricardo (1992), Marina Silva (1996) e Tarcísio Feitosa da Silva (2006).
O despertar
Korap, que trabalhava como professora, diz que a destruição de rios e florestas começou a incomodá-la com mais intensidade a partir de 2014 e 2015.
"O principal impacto aconteceu com a chegada de grandes empresas na região em que vivemos. Ali começou o loteamento de terras e o desmatamento", conta.
"Muitas vezes, íamos a um local onde costumávamos caçar ou colher frutas e, de repente, todo o terreno tinha sido limpado pelas máquinas. Daí nos perguntávamos: cadê o lago onde costumávamos pescar e brincar? Ele simplesmente não existia mais."
Korap nasceu no município de Itaituba, no Estado do Pará. A cidade é um dos principais centros do território indígena Sawré Muybu do povo munduruku, que possui 178 mil hectares ao longo do trecho central do rio Tapajós.
Esse território ainda não foi formalmente reconhecido e demarcado pelo Estado brasileiro — o que aumenta as vulnerabilidades, a possibilidade de invasões ou a ação de madeireiros e garimpeiros.
"Em 2015 eu decidi que acompanharia os caciques na luta pela nossa terra. Até porque quando o povo munduruku sai do território, ele nunca vai sozinho. As lideranças são acompanhadas por crianças, e grávidas. Com isso, mostramos que há toda uma geração voltada para o futuro que vive aqui", diz Korap.
Primeiras barreiras
A ativista admite que não foi fácil conquistar uma posição de liderança logo de início.
"Eu enfrentei muitas resistências porque sou mulher, tenho marido e filhos", comenta.
"Muitas vezes, quando aconteciam as reuniões, eu sempre ia para a frente. As mulheres me diziam: 'Alessandra, esse é o lugar dos homens'. E eu respondia: 'Só estou aqui para escutar melhor'... Sempre fui muito teimosa", brinca.
Korap alega ter questionado os motivos de só os homens poderem falar ou liderar as atividades.
"O papel da mulher sempre foi o de fazer roça, cuidar dos filhos e do marido. Elas não iam para as reuniões", observa.
Com o passar do tempo, porém, a atuação dela foi ganhando a aceitação — e os convites para participar de encontros e coordenar atividades se tornaram mais frequentes.
"E isso é um grande privilégio. Se eu tivesse desistido naquela época, hoje não estaria aqui", raciocina.
"É claro que eu pessoalmente não tenho mais a liberdade de antigamente. Mas a liberdade do meu povo, de poder ver as crianças brincando e as mulheres felizes, é o maior prêmio que eu posso receber", complementa.
Uma advogada entre nós
Korap também percebeu aos poucos que precisava buscar uma formação acadêmica.
"Parecia que nós sempre dependíamos dos brancos. Precisamos aprender as leis, a falar e a escrever bem em português, para que assim possamos dizer às empresas que não aceitamos os projetos que elas tinham dentro de nossos territórios", diz.
Foi assim que a ativista começou a cursar Direito em 2018 na Universidade Federal do Oeste do Pará, localizada na cidade de Santarém.
A ideia dela era a de poder representar o povo munduruku em ações legais contra garimpeiros e outras empresas interessadas em explorar os recursos da região.
"Eu fui toda feliz conversar com os caciques, mas eles disseram que eu não deveria estudar, que eles precisavam de mim ali", lembra.
"Mas depois eles foram convencidos de que precisávamos de uma advogada munduruku", completa.
Os planos acadêmicos de Korap, porém, foram interrompidos em 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência da República.
Durante a campanha, o ex-presidente repetiu diversas vezes que não demarcaria nenhum território indígena enquanto estivesse no cargo — promessa que ele de fato cumpriu.
"Esse foi o momento em que eu cursava a faculdade e pensava que não era hora de estar dentro de uma sala de aula. Não podia ficar trancada em quatro paredes, ouvindo os professores falarem coisas que não serviriam para mim", diz a ativista.
Depois de pausar o sonho de virar advogada, Korap se viu diante de um novo dilema. "Eu tinha saído do território indígena e não sabia mais se podia exercer o papel de liderança ou falar por aquelas pessoas", resume.
"Os caciques me disseram: Alessandra, você saiu para estudar e pode, sim, seguir falando pela gente. Foi aí que eu comecei a organizar todo o movimento."
Garimpo de fora
Uma das principais conquistas do grupo do qual Korap faz parte foi a de conseguir barrar a ação de mineradoras no território Sawré Muybu.
Segundo informações compiladas pela organização do Prêmio Goldman, entre 2011 e 2020, 97 pedidos de mineração nessa região foram realizados por empresas ao governo.
Só a Anglo American, uma companhia de origem britânica, tinha 13 solicitações para avaliar a exploração de cobre na terra munduruku — e cinco desses pedidos foram protocolados entre 2017 e 2019.
Em reuniões, Korap alertou sobre esses projetos e o que eles poderiam representar para a comunidade. Ela também organizou as estratégias para transformar o assunto numa pauta prioritária e liderou os esforços para arrecadar fundos.
Em dezembro de 2020, a ativista também esteve numa assembleia com 45 lideranças e 200 participantes, que assinaram uma declaração oficial contra o garimpo e o desmatamento em toda a Amazônia.
Após uma intensa campanha, em maio de 2021 a Anglo American desistiu oficialmente de fazer 27 pesquisas exploratórias que já estavam aprovadas em territórios indígenas da Amazônia. A lista inclui os 13 pedidos que aconteceriam em áreas Sawré Muybu.
Os organizadores do Prêmio Goldman também destacam que, após a decisão da Anglo American, outra gigante do setor tomou uma decisão parecida: a Vale anunciou que retiraria todos os pedidos de investigação sobre minérios em terras indígenas do Brasil.
No ano passado, um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) revelou que, pela primeira vez em décadas, nenhuma das 130 empresas filiadas tinha protocolado pedidos para explorar minérios em territórios indígenas do país.
Ameaças constantes
O trabalho de ativismo de Korap veio acompanhado de alguns episódios de perseguição e constrangimentos.
"Comecei a ser seguida na rua, vinha gente de fora pedir informações sobre mim e até recebi mensagens de áudio em que as pessoas diziam: 'Precisamos dar um jeito naquela índia de Itaituba porque, se ela já está dando trabalho agora, imagina quando virar advogada'", relata.
A ativista disse que esses foram sinais claros de que o trabalho dela começava a incomodar.
Em novembro de 2021, Korap participava da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP 26) em Glasgow, na Escócia, quando foi abordada por um sujeito não identificado, que disse para ela "deixar de misturar política e meio ambiente".
Naquele mesmo mês, a ativista descobriu que sua casa havia sido invadida e vandalizada. Documentos e equipamentos eletrônicos foram roubados.
Certa noite, a eletricidade da residência foi subitamente cortada, o que deixou ela própria e todos os familiares ainda mais alarmados — e todos precisaram passar um tempo na casa de amigos.
Esses eventos levaram até a publicação de uma manifestação oficial da ONU sobre o caso. No texto, a entidade mostra-se preocupada com os fatos e pede que o Estado brasileiro tome providências para proteger Korap.
"Quando invadiram o meu terreno em Santarém, meu filho mais novo me abraçou e disse: 'Mãe, eu não quero que eles te matem'."
"Eu fiquei em pânico e fui para a aldeia fazer uma reunião. As mulheres choravam e ficaram preocupadas, achando que eu iria desistir. Mas eu disse que não deixaria de falar, até porque a minha voz vai muito além ao representar a luta de um povo e a defesa de nosso território", diz.
"E é isso o que acontece em vários outros lugares da Amazônia. Só que a gente é uma sementinha, que cresce cada vez mais. Nós somos um projeto de vida, de caciques e de mulheres que querem construir o futuro para seus filhos junto com a floresta e os animais", completa.
O que vem por aí?
Questionada pela BBC News Brasil sobre o que espera do novo governo Lula, Korap adota um tom de cautela e cobrança.
"O presidente anterior [Jair Bolsonaro] deixava muito claro o que queria: ele falava diretamente em não demarcar e explorar os territórios indígenas", avalia.
"Mas, com o novo governo, precisamos continuar a nossa luta. Porque sabemos que eles também estão conversando com as empresas [interessadas na exploração da Amazônia]", diferencia.
Para a ativista, os povos indígenas não devem ficar satisfeitos com a concessão de cargos de alto escalão, ou a criação de um ministério próprio, liderado por Sônia Guajajara (PSOL).
"Isso não significa que ficaremos calados e achando que está tudo bem. Não está tudo bem se o nosso território não foi demarcado e está cheio de invasores, se os rios estão contaminados com mercúrio, se há projetos para legalizar o garimpo…", lista.
"Precisamos lembrar que os ataques não acontecem só com as armas. Alguns são feitos com canetas. E as canetas que assinam leis em Brasília podem ser a principal causa de morte do nosso povo", complementa.
"Serão mais quatro anos em que continuaremos a resistir para proteger o nosso território", conclui Korap.