Apesar de obstáculos, eleições 2022 devem marcar avanço de trans na política
Mais de 50 transexuais e travestis deverão disputar cargos em outubro, e associação prevê conquista de assento inédito na Câmara
Mais de 50 transexuais e travestis deverão disputar cargos em outubro, e associação prevê conquista de assento inédito na Câmara. Mas transfobia, violência política e novas leis eleitorais são obstáculos às candidaturas.As eleições de outubro podem ser um marco importante na luta política de travestis e transexuais. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) prevê para este ano um desempenho superior ao do pleito de 2018 - quando foram eleitas três deputadas estaduais - e acredita na conquista de uma vaga inédita na Câmara Federal.
Segundo um levantamento recente do coletivo #VoteLGBT, o número de pré-candidatos transexuais e travestis chega a 58, entre eles seis homens trans, de um total de 247 indivíduos abertamente LGBTQ concorrendo a cargos. Na lista, há parlamentares com cadeira em assembleias legislativas e em câmaras municipais, celebridades e outros militantes.
Alguns nomes, como a vereadora Duda Salabert (PDT-MG), a deputada estadual Erica Malunguinho (Psol-SP), a ex-BBB Ariadna Arantes (PSB-SP) e a ativista de direitos humanos Paula Benett (PSDB-DF), são dados como certos.
O desempenho positivo das eleições municipais de 2020, quando foram eleitas 30 vereadoras, também é motivo de otimismo. Por outro lado, entidades LGBTQ reconhecem que a vitória nas urnas ficou mais desafiadora com a nova legislação eleitoral.
Reforma eleitoral criou barreiras
Além das adversidades estruturais, como a transfobia, a invisibilidade e a violência política de gênero, as chances de vitória de travestis e transexuais foram reduzidas com a federação partidária instituída pelo Congresso na reforma eleitoral de 2021, que permite às legendas atuarem de forma unificada em todo o país.
A professora e pesquisadora Evorah Cardoso, do #VoteLGBT, afirma que a mudança foi catastrófica para as candidaturas LGBTQ. "A reforma eleitoral reduziu drasticamente a quantidade de candidaturas que cada partido pode lançar. Está um 'pega pra capar' para ver quem terá direito de ficar na urna. Me diga qual a chance de um LGBT+ ficar na urna, considerando que não existe nenhuma obrigação legal para isso", questiona Cardoso.
Maria Eduarda Aguiar da Silva, advogada da Antra, reconhece que a atual legislação eleitoral criou barreiras, mas acredita que a eleição deste ano para cargos federais e estaduais pode repetir o número do pleito municipal de 2020.
"Com as novas regras exigindo um número expressivo de votos, ficou difícil arriscar um número. Mas, diante da postura política dos partidos progressistas e do fracasso do projeto da extrema direita, esperamos eleger 30 deputadas ou mais, sendo uma federal", diz a advogada.
"Vereadoras que atingiram um número expressivo de votos em 2020 podem ser eleitas para a Câmara", completa, referindo-se às sete candidatas recordistas de votos em duas capitais e mais cinco cidades.
A análise de Duda Salabert, vereadora mais votada da história de Belo Horizonte e primeira mulher trans a ser eleita na cidade, reflete a tensão entre os avanços conquistados pela militância e a estrutura partidária vista como conservadora.
A parlamentar destaca a importância de movimentos organizados por mulheres transexuais e travestis no Brasil e na América Latina na ocupação de espaços de poder de decisão, e vê sua vitória em 2020 como parte desse processo.
"Isso é produto da organização do movimento trans que tem mobilizado e sensibilizado a sociedade. Nunca fomos pauta da esquerda, do centro, da direita e de nenhum lugar ou campo político. Então temos que ser nós por nós", afirma.
Falta de apoio dos partidos
Pré-candidatos e representantes de entidades LGBTQ criticam, porém, a falta de apoio dos partidos. "A gente cobra uma mudança nas estruturas partidárias a fim de que haja mais investimento", reivindica Salabert.
Dados do #VoteLGBT mostram que os partidos investiram 6% do teto de gastos em candidaturas LGBTQ em 2020. O percentual cai para 2% em cidades com mais de 500 mil habitantes.
Diante da escassez financeira, o coletivo aponta que, nos casos de partidos de centro e de centro-direita, 75% do dinheiro das campanhas de candidatos LGBTQ vem de recursos próprios, e 25% parte das legendas. A relação muda se a sigla for de esquerda: 75% dos gastos vêm do partido, e o restante, do candidato.
Deve-se considerar ainda a grande diferença de recursos do Fundo Partidário destinados aos partidos. Enquanto o esquerdista Psol - partido com o maior número de pré-candidaturas únicas de travestis e transexuais (13 pessoas) - conta com R$ 100 milhões, a União Brasil - legenda de direita resultante da fusão do Democratas (DEM) com o Partido Social Liberal (PSL), e sem nomes na lista do #VoteLGBT - recebe R$ 776,5 milhões.
Segundo Evorah Cardoso, em 2020 o Psol e o PT adotaram medidas de distribuição de recursos para candidaturas LGBTQ, mesmo sem legislação exigindo um percentual específico. A iniciativa é uma consequência da presença, mesmo que ainda tímida, de LGBTQs em cargos decisórios - realidade de um terço dos partidos, todos de esquerda ou de centro.
"É importante ter espaços de articulação e militância política, com setoriais, secretarias, coordenadorias e núcleos LGBTI+ dentro dos partidos. Uma vez que exista essa institucionalidade, a militância vai brigar por recursos, visibilidade e apoio a políticos LGBT", afirma Cardoso.
Capacitação para gerar mudanças
Organizações de direitos humanos querem acelerar o processo de democratização dentro e fora dos partidos por meio da educação e da capacitação. Um exemplo é a Escola de Formação Política Kátia Tapety, iniciativa do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos (Raça e Igualdade), cujo nome homenageia a primeira transexual eleita parlamentar no Brasil.
O curso direcionado à mulher LGBTQ reúne 20 pessoas, sendo oito transexuais ou travestis, com histórico de atuação política não necessariamente partidária e indicadas por associações e redes LGBTQ que atuam no país.
"Temos uma dupla formação: aulas regulares que acontecem semanalmente e seminários. A gente traz embaixadores, líderes e pessoas reconhecidas internacionalmente. São seis ou sete seminários com diferentes profissionais, diplomatas com atuação na Organização dos Estados Americanos (OEA) e em comissão permanente na ONU", conta Mariah Rafaela da Silva, oficial para participação política do instituto Raça e Igualdade.
As aulas, divididas em seis módulos, abordam desde a análise do processo histórico da formação do Estado à violência política. Nesse ponto específico, o curso trabalha na criação de estratégias de proteção, com ferramentas e dados para produção de documentos que mostrem incidências para embasar denúncias a órgãos nacionais e internacionais.
Violência política
Segundo o último dossiê da associação Antra, 80% dos transexuais eleitos afirmam não se sentir seguros para o pleno exercício de seus cargos.
"A violência política contra as mulheres não começa com a morte da Marielle [Franco] e tem colocado grandes empecilhos para o avanço e o fortalecimento da democracia. Temos que construir modelos de transparência, de comunicação e de segurança digital", diz Silva.
Paula Benett sofreu violência política digital logo após anunciar sua pré-candidatura à deputada federal. "Eles não querem ouvir minhas propostas e me chamaram de aberração. Mas não posso ter o privilégio de desistir. Vou continuar. Eu sou muitas vozes", diz a ativista.
Mas as pautas de Paula Bennet e Duda Salabert vão além de combater a transfobia e atender a outras demandas sociais e econômicas de transexuais e travestis. As duas também trabalham em temas sociais, econômicos e ambientais que atingem todos os cidadãos.
"A questão da política precisa ser ampla. E tenho visto que os debates dentro dos movimentos e das candidaturas trans têm sido amplos, não estão se limitando a falar da discriminação", frisa Maria Eduarda Aguiar, da Antra.
Perspectiva
O curso do instituto Raça e Igualdade, segundo a advogada, faz parte desse processo. Além de história e violência política, os módulos tratam ainda da estrutura e do funcionamento do Estado, de relações internacionais, além de empoderamento e participação políticas de mulheres negras, quilombolas, indígenas e LBTI (lésbicas, bissexuais, transgêneros e intersexuais).
"O último módulo será sobre perspectiva democrática e de fortalecimento democrático. Vamos olhar como se faz e se pensa boas políticas públicas para grupos específicos, mulheres negras, quilombolas, indígenas e LBTI", completa Mariah da Silva.
Bruna Ravena Braga, coordenadora da Casa de Malhú, uma ONG LGBTQ de Foz do Iguaçu (PR), é uma das alunas do curso. Estudante de administração de empresas até 2016, ela fez parte da estatística da Antra de mulheres transexuais e travestis prostitutas (90%) e sem o ensino médio (72%).
A militância abriu portas para a educação através de bolsas de estudos oferecidas pela militante Cleonice Araujo, a primeira vereadora trans de Caxias do Sul (RS), e pela Aliança Nacional LGBTI+.
"Através da militância fui deixando a prostituição. Hoje, além de coordenar a Casa de Malhú, sou cabeleireira, promotora de eventos e transformista", diz Ravena. Em novembro, quando as aulas da Escola de Formação Política Kátia Tapety terminarem, a universitária deseja iniciar campanha eleitoral para se tornar a primeira vereadora transexual de Foz do Iguaçu, em 2024.