As dificuldades das mulheres indígenas para entrarem no mercado de trabalho
Elas relatam o preconceito e a falta de espaço para disputar uma posição no mercado tradicional; muitas acabam indo para a informalidade
"A minha mãe e a minha avó sempre fugiram de território em território indígena, por conta de garimpeiros e da mineração". É assim que Zaya Ribeiro inicia sua história. A jovem indígena que, aos 21 anos, é uma modelo internacional, traz em primeiro lugar a difícil trajetória das mulheres da família em Rondônia. "Eu cresci nesse meio de violência onde era uma guerra acontecendo e eu não entendia nada disso", relembra.
Descendente das etnias Guarani Mbya e Kamurape, Zaya deixou Porto Velho aos 15 anos ao ganhar uma bolsa de estudos em um colégio no Rio de Janeiro. Aos 17, com o sonho de ser modelo, mudou-se para São Paulo em busca de oportunidades na área. "O que você está fazendo aqui, não se encaixa no padrão, não tem altura" foram algumas das respostas de agências para a jovem.
"A gente não tem o espaço de voz, a gente não tem espaço de vez. A gente não tem a oportunidade", destaca Zaya. Segundo pesquisa de 2020 da FGV Social (Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas), os indígenas foram os mais impactados no mercado de trabalho pelas consequências da pandemia da covid-19, pois perderam 28,65% da renda.
Depois de vários 'nãos', em 2020, aos 19 anos, com o suporte da estilista indígena Dayana Molina, que a treinou para a passarela e para fotos, Zaya começou a conseguir trabalhos com empresas brasileiras. "A gente que é indígena, que está na comunidade, aprende desde cedo que trabalhamos em coletivo", diz.
Em 2021, Zaya foi convidada para ser parte de uma das maiores agências de modelo do País. No entanto, após alguns trabalhos, sentiu que precisava trazer pautas políticas como a questão da preservação da natureza, da luta contra o aquecimento global e, afirma, não viu espaço para abordar a discussão climática em seus projetos. Depois de um ano, ela encerrou o contrato com a agência.
Zaya também critica a apropriação cultural e a não inclusão de indígenas na indústria da moda. "É que as meninas que estão na comunidade hoje precisam de um rosto real estampado nas suas campanhas nessas revistas. Elas não vão ter uma pessoa real", destaca. No entanto, Zaya ressalta que a retomada identitária é um ponto importante da vida de muitos indígenas.
Em 2022, o mercado internacional começou a se abrir para Zaya. "Você é a cara da revolução", foi o que ela ouviu de representantes de grandes marcas europeias. E agora, ela se sente ouvida.
"Eles estão me apoiando no ativismo e eu quero ser modelo ativista. Eu venho de um povo que foi chacinado, se tem 20 indivíduos na Amazônia, é muito. É como se eu não tivesse a minha comunidade para voltar e viver lá. Por isso que eu falo em nome de todos os povos", destaca.
A jovem conta com quase 32 mil seguidores no Instagram, é embaixadora do Legacy Fórum, uma organização sem fins lucrativos que destaca o legado dos povos originários, e foi a primeira modelo indígena a ir ao Festival de Cinema de Veneza para pautar discussões sobre a proteção aos povos indígenas. E para o Brasil, a jovem "enxerga esperança, mais do que qualquer outra coisa".
Em 2023, três mulheres indígenas ocupam cadeiras na Câmara dos Deputados. São elas: Célia Xakriabá, Juliana Cardoso e Silvia Waiãpi. O maior número, desde 2018, quando a primeira e única mulher indígena, Joenia Wapichana, foi eleita na Câmara. No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Joenia vai estar à frente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e Sônia Guajajara vai comandar o Ministério dos Povos Indígenas.
Mesmo com avanço, ainda tímido, na representação de indígenas na política, os números do desemprego para essa população são preocupantes. Segundo microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre os primeiros trimestres de 2012 e 2022, a taxa de desemprego de jovens indígenas de 18 a 29 anos é de 14,9%, sendo maior que a da média nacional do Brasil, de 14,2%.
Ainda segundo os dados, a taxa de informalidade nesse grupo é de 46,6%, a maior em comparação com jovens de outros grupos étnicos e do que a média nacional (39,9%).
Ou seja, a cada dez jovens indígenas, pelo menos quatro estão no mercado informal. "Os indígenas estão em uma posição bem mais vulnerável em termos de garantias de direitos constitucionais vinculados ao trabalho", ressalta a pesquisadora e economista da FGV IBRE Janaína Feijó, que analisou os dados para a reportagem.
Além disso, a média de rendimento dos indígenas que ocupam cargos informais é a mais baixa, sendo de R$ 1.055, se comparado aos indígenas que ocupam cargos formais e a média nacional. Para a pesquisadora, é necessário investir em políticas públicas de qualificação, capacitação e formação educacional desse público.
Ser a própria referência
Maranhense que mora no Rio de Janeiro desde 2014, Ywyzar Guajajara tem o sonho de ser atriz desde criança, muito inspirado pela tia, Zélia Guajajara. Na tentativa de ser selecionada para um projeto internacional, viu em duas colegas de profissão, também indígenas, que participavam da seletiva, o apoio necessário para se acalmar e aumentar sua concentração.
"Cada vez mais a gente vai segurando na mão do outro, torcendo e se apoiando. Eu acho que quando a gente está junto, tudo fica mais leve, porque a gente não está sozinho. E mesmo que sejam de etnias diferentes, a gente sempre se apoia, porque a conquista de uma pessoa é uma conquista de toda uma nação", relembra.
No ano passado, aos 19 anos, depois das etapas do teste para o elenco da série Tarã, da Disney+, ela descobriu que foi escolhida para ser a protagonista. A história de ficção ambientada na Floresta Amazônica trata sobre a preservação da natureza e conta com uma personagem principal forte, segundo a atriz.
Durante as gravações, que ocorreram no Acre, Ywyzar contracenou com a tia, com outros indígenas de diferentes etnias e teve o apoio da produção, que também contou com profissionais indígenas, para desempenhar seu segundo papel como atriz. Anteriormente, a jovem tinha participado de um projeto da TV Cultura.
Com a finalização das gravações, Ywyzar quer buscar outros testes, investir na carreira e inspirar outros jovens indígenas na busca pelos seus sonhos. "Tem até uma frase que eu vi, recentemente, e é 'se você não tem referência, seja referência'", destaca.
Uma segura a mão da outra
Mesmo não se enxergando no mundo da moda, Dayana Molina, aos 19 anos, deixou o curso de Ciências Sociais e iniciou sua trajetória no mercado criativo na Argentina em 2007. Com a experiência de diretora de arte, retornou ao Brasil preparada para não só atuar no mercado da moda, mas para se reconectar com sua ancestralidade.
"É uma grande reconexão ancestral, porque a minha bisavó era costureira no sertão de Pernambuco. [...] É uma mistura de Nordeste com Andes, de Pernambuco com Peru", explica a descendente das etnias Fulni-ô e Aymará.
No entanto, o preconceito a acompanhou em muitos trabalhos ao longo de sua carreira. "Muitos estereótipos, como a ideia de que o indígena legítimo não está na cidade. Isso é uma grande mentira colonial. Isso é uma invenção, porque a gente está em todos os espaços que a gente quiser", diz a estilista.
"Aí começa a minha indignação de tentar criar uma moda que existe de fato diversidade ética, responsabilidade social e representatividade, porque não existe você falar de diversidade e não ter diversidade étnica e racial", ressalta.
Em busca de liberdade e autonomia para abordar este tema, Molina resolveu mudar de carreira e sair do cargo de stylist e diretora de arte para diretora criativa da sua própria marca, a Nalimo, em 2017.
Questões indígenas na passarela
Para as passarelas e coleções, a estilista leva questões indígenas como a demarcação de territórios e o fim do genocídio dos povos originários para o centro do debate. "Infelizmente, a gente ainda aborda muito as nossas dores nos nossos processos de criação. [...] Não consigo desconectar meu processo criativo de um processo de consciência social", explica.
A Nalimo, para a estilista, nunca foi apenas uma marca de roupas, mas um local de acolhimento para outros indígenas que trabalham no ramo criativo. "Para que outros se inspirem através de nós", diz Molina.
Tanto Zaya como Ywyzar tiveram o apoio de Molina para continuar a perseguir seus sonhos. "Na comunidade indígena, tem muitas adolescentes que não vêem a vida delas próprias mais do que a margem do rio. Não se vê na universidade, não se vê atuando no segmento", destaca Zaya, que relembra a importância de Dayana.
Hoje, aos 34 anos, com 15 anos de carreira na moda, a estilista trabalha na Nalimo e também mantém um coletivo latino-americano, o Indigenas moda BR, em parceria com Zaya, para resgatar a identidade e impulsionar a empregabilidade de jovens indígenas na indústria criativa.
O coletivo tem 12 gestores e já ajudou cerca de cem profissionais - direta ou indiretamente - a entrarem no mercado ou conseguirem novas oportunidades em suas carreiras criativas. "É um processo de reconectar com outros parentes indígenas de outras etnias e entender que nossos dilemas são semelhantes, apesar da nossa diversidade", diz.
Para o futuro, a estilista, que já desenvolveu um vestido para o MET Gala, quer uma moda mais humanizada, mais ética, mais responsável e mais sustentável. E isso ela busca no presente. Em novembro, inaugurou seu ateliê em São Paulo e, em dezembro, Dayana Molina participou de mais um desfile na Casa dos Criadores.
"Esse legado é importante para que outros possam sonhar com esses espaços, para que eu não seja única, para que a gente possa olhar para uma geração de criadores indígenas que virá, porque virá", finaliza.