“Basta ser mulher para sofrer violência política”, avalia candidata à vice-presidência, Mara Gabrilli
No Sudeste, ataques virtuais atingem candidatas de diferentes ideologias. No topo da lista estão Hasselmann, Carla Zambelli e Marina Silva
A lei que tipifica e pune a violência política de gênero, em vigor no Brasil desde o ano passado, foi insuficiente para proteger as candidatas a cargos eletivos em 2022. A novidade no Código Eleitoral brasileiro pune assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça direcionadas às mulheres candidatas e eleitas com um a quatro anos de reclusão e multa. Ainda assim, elas continuam sofrendo discriminação pela própria condição feminina, com o objetivo notável de dificultar suas campanhas e mandatos.
Um caso emblemático é o da senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que se apoiou na nova regra para denunciar ataques recebidos na internet durante a campanha ao Departamento de Polícia Legislativa do Congresso Nacional. Integrante da única chapa totalmente feminina que concorria à presidência — ao lado da também senadora Simone Tebet (MDB-MS) —, Mara se tornou alvo da violência política de gênero, principalmente após repreender algumas falas do presidente Jair Bolsonaro (PL). Dezenas de tweets com teor machista foram disparados a ela, com termos como “burra”, “vergonhosa” e “inútil”.
Sendo uma pessoa com deficiência, a ex-candidata também viu o machismo se aliar ao capacitismo, com mensagens que se referiam a ela como “aleijada”, termo preconceituoso usado para se referir a pessoas com deficiência física. Os ataques puseram a psicóloga e publicitária no ranking das 10 candidatas mais mencionadas no período analisado pela reportagem, com 2.107 menções. Desse total, analisamos uma amostra de 343 tuítes aleatórios: 155 são ofensivos à candidata e 188 não.
Para a tucana, é um erro associar casos como o dela com questões ideológicas ou partidárias: “Basta ser mulher e construir uma carreira na política para ser alvo de ataques”. Os dados da análise das candidatas do Sudeste colaboram com a avaliação de Gabrilli. Embora as concorrentes pelo PSOL tenham recebido 33,3% de mensagens mapeadas, o ranking das dez mais mencionadas traz representantes de posicionamentos diversos. De Carla Zambelli (PL/SP) a Duda Salabert (PDT/MG), de Sâmia Bonfim (PSOL-/SP) a Rosângela Moro (União Brasil/SP), as bandeiras defendidas podem ser muito distintas entre si, mas o teor dos ataques as aproximam.
A cientista política Madalena Gonçalves Castro, secretária executiva da Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos nas Ciências Sociais (RedeGen), ressalta que um dos principais objetivos da violência política de gênero é silenciar as mulheres, impedindo que defendam seus interesses e exerçam plenamente seus direitos político-eleitorais. Por conta disso, a prática é diretamente proporcional à presença de mulheres nos espaços de decisão.
“Basta que despontem no cenário local ou nacional para que suas campanhas sejam inferiorizadas ou sejam taxadas como ‘despreparadas’. Por vezes, suas características físicas e vidas pessoais ganham mais notoriedade que suas agendas de campanha ou discursos políticos, algo que não acontece com os homens”.
Segundo a mestra e doutoranda em Ciência Política pelo IESP/UERJA, os diferentes tipos de violência – física, psicológica, sexual, econômica, moral ou simbólica - são experimentados por todas as mulheres. Entretanto, são mais recorrentes graves, ao ponto de incluir ameaças de morte, sobre defensoras de direitos humanos, mulheres negras, trans e travestis, como ocorreu neste ano com a candidata Duda Salabert, que precisou utilizar escolta e colete à prova de balas na reta final da campanha.
SITUAÇÃO NÃO É MELHOR ENTRE CANDIDATAS COM MENOS VISIBILIDADE
Com visibilidade bem menor do que a senadora paulista, vereadora Camila Valadão (PSOL-ES) enfrenta agressões semelhantes na Câmara Municipal de Vitória, Espírito Santo. Em 1º de dezembro de 2021, enquanto servidores da educação protestavam por mais transparência e participação da sociedade na reformulação da base curricular, parlamentares de diferentes partidos se posicionavam sobre o tema. Mas a sessão acabaria interrompida por ofensas machistas do vereador Gilvan da Federal (PL) à colega de Casa Legislativa.
Não foi o primeiro ataque do bolsonarista à assistente social e doutora em Política Social. Desde sua posse, em janeiro daquele ano, Camila precisou lidar com episódios como aquele, nos quais foi interrompida e teve suas roupas criticadas sob o argumento de que “quem quer respeito se dá o respeito!”. Dessa vez, no entanto, o vereador foi além: a acusou de “satanista”, “assassina de bebês e crianças” e gritou para que calasse a boca. Camila acionou a Corregedoria da Câmara, criada em 2021 para julgar processos entre os parlamentares, porém, o caso foi arquivado.
Sem o amparo da Câmara, a vereadora redobrou os cuidados com a própria integridade física durante a campanha como deputada estadual em 2022. Sua imagem havia sido usada massivamente pela direita nos meios digitais, e a possibilidade de enfrentar novos episódios de violência era uma preocupação constante. “A gente não divulgava nossa agenda de campanha de rua e nem as panfletagens do dia a dia. Só chegavam até as redes sociais registros e fotos após elas acontecerem”, explica.
Entre 17 de agosto e 12 de outubro, Camila Valadão recebeu 126 menções em suas redes sociais, e foi atacada por um usuário. Ela foi uma das candidatas acompanhadas pelo MonitorA, observatório de violência política online da Revista AzMina, InternetLab e Núcleo Jornalismo, que coletou e analisou tweets direcionados a candidatas mulheres - de diferentes espectros políticos, raças, religiões, identidades de gênero e orientações sexuais - para compreender as dinâmicas da violência política de gênero e do discurso de ódio sexista.
Apesar das restrições para realizar a campanha nas ruas e nas redes, Camila Valadão foi a quarta deputada mais votada à Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), e a mulher com melhor desempenho nas urnas para o cargo, com mais de 52 mil votos. No entanto, mesmo diante da votação expressiva, a parlamentar não comemora o cenário que irá encontrar no legislativo capixaba. Apenas quatro das 30 cadeiras serão ocupadas por mulheres. “Tenho certeza que a gente vai enfrentar essas questões [de violência de gênero], até porque a participação desses grupos da direita conservadora se ampliou muito.”
QUANTO MAIS MENÇÕES, MAIS VOTOS?
Das dez candidatas mais mencionadas, apenas três não tiveram sucesso nas urnas: a deputada federal Joice Hasselmann, candidata à reeleição pelo PSDB/SP, a deputada estadual Janaina Paschoal, que pleiteava o cargo de senadora de São Paulo pelo PRTB, e Mara Gabrilli. Joice e Janaina compartilham trajetória semelhante: se consagraram na onda bolsonarista de 2018 com recordes de votos para candidatas mulheres pelo PSL, na época partido do presidente eleito; e sucumbiram após o rompimento com o líder e seus seguidores.
Cogitada para o cargo de vice-presidente na campanha de reeleição de Bolsonaro, Janaina viu o apoio se transformar em ódio e misoginia à medida que começou a discordar da postura do presidente, relativizando e criticando as medidas de enfrentamento à pandemia de Covid-19. O estopim dos atritos veio em 2021 quando, em entrevista à Revista Veja, a deputada afirmou que preferia votar no ex-ministro Sérgio Moro, pois o “estilo do presidente de governar no conflito não é saudável”. A declaração desencadeou um bombardeio de xingamentos nas redes, que não deu trégua durante as eleições de 2022. Janaina teve 3.792 menções no Twitter entre 17 de agosto e 12 de outubro. Numa amostra de 343 tuítes aleatórios, verificamos que 58% (199) eram ofensivos à candidata.
O impacto do ódio nas urnas
Para Madalena Castro, os casos de Janaina e Joice mostram como a violência pode ser mais evidente num campo político com disputas internas por protagonismo. “As candidatas eleitas na onda bolsonarista, ou pertencentes à base aliada do governo, vivenciaram ataques sexistas e misóginos ao primeiro sinal de protagonismo ou dissidência política. A violência política de gênero pode ocorrer, portanto, até mesmo por parte de colegas e lideranças da própria legenda.”
Diante de um cenário onde a violência afasta as mulheres da política, Madalena entende que a mudança não pode se dar fora da política institucional. “É com mais mulheres em cargos de liderança política, partidária e em outras instâncias institucionais, incluindo o Supremo Tribunal Federal, as Procuradorias Regionais Eleitorais e os Conselhos de Ética da Câmara e do Senado, que acolhem e julgam esses casos, que avançaremos no debate e no enfrentamento da violência política de gênero”, defende.
Vendo as ofensas tomarem grande repercussão, e à espera de que as leis possam frear tal fenômeno, a senadora Mara Gabrilli faz um apelo contra o enfraquecimento da democracia, provocado pela violência política de gênero. “Temos que conscientizar a população de que, quando uma mulher sofre violência, de qualquer forma ou tipo, toda a sociedade perde e se empobrece”. E acrescenta: “A violência não pode paralisar a boa política. Eu me nego a viver com medo”.