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Brasileiros negros em aldeias remotas de quilombos se levantam para serem contados

Quilombos foram formados ao longo de séculos por pessoas escravizadas que escaparam do trabalho forçado

29 set 2022 - 05h00
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Juntos, o censo atualizado do Brasil e o crescente número de candidatos negros fazem parte de um acerto de contas lento com séculos de escravidão.
Juntos, o censo atualizado do Brasil e o crescente número de candidatos negros fazem parte de um acerto de contas lento com séculos de escravidão.
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Pela primeira vez em seus 132 anos de história, o censo brasileiro em andamento inclui uma questão que conta os membros das comunidades quilombolas fundadas por escravos fugitivos.

Na Ilha de Mare, uma ilha com vários quilombos na costa de Salvador, no nordeste do Brasil, essa chance de ser contada é um passo de uma transformação política pela qual os organizadores locais lutam há muito tempo.

“Fazer parte do censo é uma estratégia para nós, uma estratégia de resistência e mudança”, diz Marizelha Carlos Lopes, 52 anos, ativista local e pescadora da ilha, onde 93% das pessoas se identificam como negras. “Um dos nossos objetivos é escapar de uma invisibilidade intencional.”

“Fazer parte do censo é uma estratégia para nós, uma estratégia de resistência e mudança”, diz Marizelha Carlos Lopes, 52 anos, ativista local e pescadora da ilha
“Fazer parte do censo é uma estratégia para nós, uma estratégia de resistência e mudança”, diz Marizelha Carlos Lopes, 52 anos, ativista local e pescadora da ilha
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

A amiga Eliete Paraguassu, 42, está montando outra frente na estratégia. Ela é a primeira mulher da ilha a disputar uma vaga no legislativo baiano — uma entre um número recorde de candidatos negros concorrendo a cargos estaduais e federais no Brasil nas eleições de outubro deste ano.

Juntos, o censo atualizado do Brasil e o número crescente de candidatos negros fazem parte de um lento acerto de contas com séculos de escravidão que só terminaram em 1888, tornando o Brasil o último país do mundo a abolir a prática.

Quilombos foram formados ao longo de séculos por pessoas escravizadas que escaparam do trabalho forçado para criar comunidades isoladas e de auto-subsistência em florestas remotas e serras ou em ilhas como a Ilha de Mare.

primeira vez em seus 132 anos de história, o censo brasileiro em andamento inclui uma questão que conta os membros das comunidades quilombolas fundadas por escravos fugitivos.
primeira vez em seus 132 anos de história, o censo brasileiro em andamento inclui uma questão que conta os membros das comunidades quilombolas fundadas por escravos fugitivos.
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Os moradores de quilombos agora esperam que uma contagem adequada de seus números e mais vozes eleitas abram as portas para melhores serviços sociais e garantias de direitos para pessoas e lugares há muito deixados de fora dos mapas oficiais.

A associação nacional de quilombos CONAQ identificou cerca de 6.000 territórios quilombolas. O presidente da CONAQ, Antonio João Mendes, disse que o reconhecimento governamental das comunidades ganhou força sob o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva há duas décadas, quando as comunidades conquistaram direitos fundiários mais formais e apoio a programas culturais.

A candidatura presidencial de Lula este ano apresenta um forte contraste, disse Mendes, com o atual presidente Jair Bolsonaro, que desmantelou muitos desses programas e retardou o reconhecimento de quilombos adicionais.

Bolsonaro foi multado em 50.000 reais (US$ 10.000) em 2017 por insultar moradores de quilombos, dizendo que “não fazem nada” e “não são nem bons para procriar”.

Os moradores de quilombos esperam uma contagem adequada de seus números e que mais vozes eleitas abram as portas para melhorias.
Os moradores de quilombos esperam uma contagem adequada de seus números e que mais vozes eleitas abram as portas para melhorias.
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Na Ilha de Mare, os moradores de quilombos sobreviveram por gerações do trabalho árduo de pescadores artesanais e pescadoras.

O sobrinho de Marizelha, Uine Lopes, de 26 anos, que acorda às 3 da manhã para pescar nas águas cristalinas que cercam sua comunidade de Bananeiras, orgulhosamente comemora a tradição com uma tatuagem no braço esquerdo de seu avô lançando uma rede.

Na Ilha de Mare, os moradores de quilombos sobreviveram por gerações do trabalho árduo de pescadores artesanais e pescadoras.
Na Ilha de Mare, os moradores de quilombos sobreviveram por gerações do trabalho árduo de pescadores artesanais e pescadoras.
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Ilha da calma

Sem pontes para o continente, a cerca de um quilômetro de distância, os moradores da Ilha de Mare, sem carros, circulam como seus ancestrais: a pé, a cavalo e em pequenos barcos. Uine Lopes diz que parece uma ilha de calma, longe da agitação e da violência da cidade grande.

A tarde, as mulheres se reúnem para raspar a carne dos caranguejos e amêijoas pescadas naquele dia, enquanto outras tecem os tradicionais cestos de palha. A noite, os vizinhos costumam se reunir para aulas de dança ou ginástica à beira-mar.

No entanto, as comunidades pesqueiras dizem que seus meios de subsistência estão ameaçados pela poluição de um porto petroquímico próximo do outro lado da baía, onde um barco que transportava gás propano explodiu em 2013.

A tarde, as mulheres se reúnem para raspar a carne dos caranguejos e amêijoas pescadas naquele dia.
A tarde, as mulheres se reúnem para raspar a carne dos caranguejos e amêijoas pescadas naquele dia.
Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Um grupo da indústria responsável pela limpeza do vazamento disse que estava monitorando a baía para proteger as comunidades do entorno, mas Marizelha Lopes lembra que perdeu uma temporada inteira de pesca e turismo por conta da contaminação.

“Ainda não há estudos específicos ou políticas públicas que garantam nossa segurança”, disse o sobrinho. “Não temos rota de fuga.”

A autoridade portuária não respondeu aos pedidos de comentários.

Frustrada com a falta de respostas ao que ela chama de “racismo ambiental” contra sua comunidade insular, Eliete Paraguassu, que como Marizelha coleciona mariscos, está dando o salto para a política.

No período que antecedeu a votação de 2 de outubro, ela viajou para cidades próximas para angariar apoio à sua candidatura à legislatura estadual, com adesivos declarando “Meu voto será antirracista” e “Justiça para Marielle”.

Este último é uma referência a Marielle Franco, uma vereadora negra do Rio de Janeiro que lutou pela justiça racial e foi morta a tiros em 2018, no que alguns chamam de assassinato político.

Seu legado tem sido um grito de guerra para mulheres negras como Paraguassu. Dos 513 parlamentares eleitos para a câmara baixa do Congresso em 2018, pouco menos de um quarto se identificou como negro – e apenas 12 deles eram mulheres.

Por outro lado, 50,7% dos brasileiros no censo de 2010 identificaram nas duas categorias raciais que a agência de estatísticas do governo combina em sua definição de “negro”.

Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

Alternando seu tempo entre pescar na Ilha de Mare e estudar educação rural na universidade, Uine Lopes é um dos poucos estudantes determinados a trazer os frutos de suas pesquisas de volta à ilha.

“Precisamos ter consciência, votar no maior número possível de negros comprometidos com a luta, que tenham visões específicas para comunidades indígenas, quilombolas, pescadores, ribeirinhos e tantas outras comunidades que vivenciam a falta de apoio do Estado", ele diz.

Marizelha não frequentou a escola após a quinta série. mas ver seu sobrinho combinar atividades acadêmicas com serviço à comunidade a inspirou.

“Estou cada vez mais convencida de que as universidades são importantes”, disse ela. “Mas nossa resistência e luta é o que nos equipa e nos prepara para o confronto.”

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