Calcinha para transgênero e travesti vira negócio e atende demanda reprimida
Peças íntimas têm tecido e modelagem especiais para evitar problemas de saúde; marca atende clientes como a cantora Linn da Quebrada
A exclusão de certos grupos na sociedade aparece até em coisas muito simples, como comprar roupa íntima. Se você é uma pessoa cisgênero (que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento), você vai em uma loja e compra calcinha ou cueca em poucos minutos. Mas para travestis e mulheres e homens transgêneros até uma atividade tão simples quanto essa é cheia de obstáculos. Essas dificuldades, aliadas ao potencial de mercado e à preocupação com a saúde, motivam empreendedores a criar negócios mirando esse público.
No ano passado, a Pantys, marca de calcinhas absorventes para menstruação, lançou a cueca menstrual, voltada para homens transgêneros e pessoas não binárias (que não se identificam nem com o gênero masculino nem com o feminino). Oito meses após o lançamento, a cueca está entre os 10 produtos mais vendidos da marca ao redor do mundo e teve um crescimento médio de 190% por trimestre desde junho de 2021.
A dificuldade em encontrar produtos que a atendessem como mulher trans fez a estilista Sandy Mel criar uma empresa especializada em calcinhas e biquínis, em Itajaí (SC). Com produtos que variam entre R$ 25 e R$ 150, além de mulheres trans e travestis, a empresa ainda atende mulheres cisgênero e homens crossdresses (que gostam de se vestir e de se portar de acordo com o gênero oposto), ainda que em menor quantidade.
Mas por que uma calcinha para mulheres trans e travestis precisa ser pensada especificamente para esse público? Entre essas pessoas, há muitas que não fizeram a cirurgia de redesignação sexual, ou seja, elas possuem um pênis. Assim, o tecido e a modelagem da calcinha precisam ser diferentes para conseguir acomodar o órgão.
Outro fator que interfere na modelagem é a “aquendação”, técnica que consiste em esconder o pênis para que ele não fique ressaltado na calcinha. Esse método é muito utilizado por mulheres trans e travestis e por drag queens quando estão no personagem. Para “aquendar”, é comum usar fita adesiva e cola no órgão genital, o que pode ser prejudicial à saúde. Nesse ponto, entram as calcinhas pensadas para esse público, que evitam o uso de substâncias que fazem mal ao corpo.
Na empresa de Sandy é ela, com sua experiência pessoal, quem desenha os produtos, faz os cortes, compra os tecidos, pensa nos modelos e conduz as vendas pelas redes sociais e marketplaces. Para confeccionar as peças, ela conta com uma equipe de costureiras.
“O maior desafio hoje é manter o padrão de qualidade, mesmo com o aumento do preço dos tecidos e dos aviamentos, sem aumentar o preço final. O público é muito exigente, sempre quer novidades, então eu renovo as opções de estampa a cada 15 dias. Tem loja que não vende tecido em pequena quantidade, então a compra mais básica que eu faço não fica por menos de R$ 1.500”, explica.
Victor Alves e Everton Torres perceberam que havia uma demanda no mercado e, em 2018, criaram a TGW, que fabrica e comercializa moda íntima, praia e fitness para mulheres trans e travestis em Blumenau (SC).
"Blumenau se tornou uma referência para pessoas trans com uma clínica voltada para esse público, que é reconhecida mundialmente. Então, percebemos a falta de oferta, porém uma grande demanda – não em termos de mercado, mas de necessidade. A mulher trans e travesti precisa poder comprar uma roupa íntima feita para o corpo dela, para que ela se sinta inserida na sociedade”, explica Everton.
Por serem dois homens cisgênero, eles precisaram de ajuda para confeccionar os produtos. “Tivemos uma ajuda dessa clínica que atende pessoas trans para fazermos peças que se adequam ao órgão. Dependendo da qualidade da calcinha, acaba machucando e inflamando”, conta Victor.
Hoje, na empresa, trabalham os dois sócios e uma revendedora que comercializa as peças nos Estados Unidos, além de um investidor anônimo. As vendas são feitas pelas redes sociais, e-commerce, Whatsapp e marketplaces. O carro-chefe, a calcinha, custa R$ 49,90. A dupla vende, em média, 100 pedidos por mês.
De olho na saúde
A saúde também é uma questão importante para o surgimento desses negócios. Em 2016, a empreendedora Silvana Bento criou a sua empresa, a Trucss, em São Paulo, a partir de um problema detectado no trabalho como técnica em hemoterapia. Observando as pacientes trans e travestis que chegavam aos hospitais, percebeu que muitas eram internadas para fazer cirurgia nos rins. Foi atrás de respostas e entendeu que o problema acontecia porque elas seguram a urina por muito tempo.
O motivo é explicado pela técnica da “aquendação”. Como geralmente ela é feita com cola ou fita, só se retira no banho, o que faz com que a pessoa passe muito tempo sem fazer xixi, e isso gera doenças do trato urinário.
Diante desse cenário, Silvana pegou tecido, linha e agulha e desenhou um protótipo de calcinha que, com um funil entre as pernas, simula a técnica da ‘aquendação’. Assim, a pessoa pode ir ao banheiro quando der vontade, sem grandes transtornos. Silvana entrou com o processo de patente em 2016, mas a aprovação pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) leva em média seis anos para a concessão. Há casos em que os inventores tiveram que esperar mais de 10 anos.
A partir do modelo da calcinha, que custa em média R$ 70, ela desenvolveu também uma linha praia. Uma de suas clientes é a cantora Linn da Quebrada, atualmente participante do Big Brother Brasil 22. A BBB, inclusive, levou os produtos para usar durante o confinamento.
As vendas da Trucss são feitas por um site - que conseguiu colocar de pé após sua participação no programa Shark Tank - pelo Instagram e pelo WhatsApp. No fim de 2020, Silvana acreditou que, com a chegada da vacina no próximo ano, a economia iria melhorar, e abriu uma loja física em São Paulo. Mas, com a fase vermelha da pandemia, que veio logo depois, teve que fechar após seis meses.
“Nossas vendas caíram 70% durante a pandemia. Eu tinha uma equipe, mas precisei dispensá-los e fiquei sozinha na marca, apenas com a pessoa terceirizada que fabrica as peças para mim”, conta. Por ser um negócio pequeno e sem capital de giro, as vendas são feitas por encomenda, o que, para Silvana, é o maior desafio da empresa.
“Quando a pessoa compra, geralmente, ela precisa do produto com urgência. E eu demoro de dois a 20 dias úteis para entregar. Acaba sendo até constrangedor falar isso para uma cliente. Se eu conseguir fazer um estoque e ter os produtos na pronta-entrega, vai facilitar a conclusão da venda. Como eu terceirizo a fabricação, eu não tenho a costureira só para mim, então eu disputo com outras pessoas”.