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Carnaval é uma ferramenta antirracismo religioso, dizem especialistas

A relação com o candomblé é antiga e o compartilhamento de termos, expressões e costumes é comum entre a religião e a festa popular

21 fev 2023 - 09h36
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Imagem mostra uma representação de Exu no Carnaval da Grande Rio.
Imagem mostra uma representação de Exu no Carnaval da Grande Rio.
Foto: Imagem: Mauro Pimentel/AFP / Alma Preta

O carnaval, festa cultural e tipicamente brasileira, bebe da fonte de diversas influências na elaboração de seus enredos anuais, em busca do título de melhor escola de samba. No entanto, uma temática se destaca dentre as tantas apresentadas nos sambódromos: a homenagem aos orixás e referências ligadas a essas divindades do panteão africano.

"No carnaval, cultura e candomblé se misturam e, de certa forma, se retroalimentam. É uma oportunidade do Brasil e do mundo enxergarem o quanto a ancestralidade de religiões de matriz africana são inspiradoras para os diversos tipos de manifestações artísticas", avalia o artista visual e babalorixá Carlos Aquino.

Para a jornalista e pesquisadora de cultura afro-brasileira Claudia Alexandre, a importância de trazer os orixás para o carnaval brasileiro é reafirmar que as divindades são parte fundamental da cultura das escolas de samba. Ela salienta que o entrelaçamento de uma festa negra com as práticas religiosas estão na origem desse tipo de organização, a partir da década de 1930, chamada "escola de samba".

"No Rio de Janeiro, as escolas de samba mais tradicionais, como Mangueira, Portela, Império Serrano, Salgueiro, entre outras, nasceram sob a proteção de pais e mães de santo, dentro de terreiros de macumbas e de candomblés, e têm orixás assentados em sua fundação, além de membros da bateria também tocarem em terreiros", explica a especialista.

Cláudia salienta que mesmo no carnaval, os toques do samba possuem origem e se misturam aos ritmos consagrados aos orixás do candomblé. "Parte das baterias têm como patrono um orixá. Então, é uma relação que está entrelaçada desde o início", destaca.

Orixá e sociedade

O sociólogo e professor universitário Tadeu Matheus explica que quando a sociedade assiste às escolas de samba no carnaval, sobretudo, às agremiações que falam de orixá, isso acaba por diminuir as tensões e o impacto do racismo religioso contra os cultos de matriz africana.

"O pessoal relaxa um pouco, assiste aos desfiles e de certa forma compreende o que essas escolas estão propondo de construção de imaginário, de identidade, e de reeducação religiosa da nação. O que ocorre é que, infelizmente depois do carnaval, as tensões voltam, e a todo momento tentamos recuperar esses espaços de discussão para poder minimizar o impacto do racismo religioso", enfatiza o sociólogo.

No grupo especial de 2023, duas escolas do Rio de Janeiro irão abordar os orixás em seus desfiles de carnaval (Unidos da Tijuca e Unidos de Vila Isabel). Já na festa paulistana, três agremiações optaram por enredos que destaquem a importância das divindades do panteão africano: Tom Maior, Gaviões da Fiel e Império de Casa Verde.

Para o babalorixá Carlos Aquino, mesmo que o carnaval seja uma festa anual, o evento é essencial para mudar as perspectivas da sociedade sobre o que é a ancestralidade e como orixá está mais próximo da cultura brasileira do que as pessoas se dão conta.

"Se por meio do carnaval, uma dentre dez pessoas que assistem ao desfile sobre os orixás interromper o ciclo de violência religiosa, é possível que essa tradição preconceituosa diminua. Claro que não é o ideal, mas já é um começo para uma sociedade que busca padrões eurocêntricos nas suas crenças", avalia o líder de terreiro.

Espaço seguro

"O carnaval das escolas de samba sempre foi um amplificador dessa cultura negra e dos anseios do negro em ganhar o espaço público, de se manter pertencente à dinâmica da sociedade, apesar de ser visto apenas como uma festa que hoje, é gerida pela indústria do carnaval", comenta Cláudia Alexandre.

A partir deste pensamento, a especialista enfatiza que as escolas de samba são espaços de crítica social, política e economia. Logo, o carnaval promove um local para a narrativa dos excluídos, que ganham projeção e protagonismo neste período.

"Isso fica demonstrado em relação ao debate da intolerância religiosa no carnaval de 2022, com a vitória da Grande Rio, que levou para a avenida o enredo em que Exu era o personagem central. E todas as formas em que ele é visto pela sociedade - das leituras equivocadas até a leitura real - de um elemento que é importantíssimo para o sistema de crença negro-africano", diz.

"O campeonato da Grande Rio mostrou o quanto essa linguagem é potente e didática para a gente desconstruir narrativas demonizantes em relação ao orixá Exu, em um enredo que pautou o racismo religioso ao mesmo tempo que empoderou a luta contra as violências que só crescem no Brasil", completa.

"O povo do samba e o povo do santo compartilham"

Cláudia explica que quando se fala de carnaval e religiões de matriz africana, as expressões ocasionalmente irão se esbarrar, como é o caso da palavra "barracão", usada para determinar as casas de candomblé e também os espaços das escolas de samba.

"O povo de samba e o povo de santo compartilham linguagem e expressões que remetem a um passado comum, quando nada estava separado", avalia.

Para o sociólogo Tadeu, as denominações comuns estão permeadas por todas as rodas de resistência negra no Brasil. Segundo ele, os barracões estão para o candomblé como estão também para as escolas de samba, bem como os terreiros, que também fazem parte da cultura da capoeira, do carnaval, e da religião.

"São questões de origem afro-bantu, em uma dimensão cosmológica de que uma coisa não está necessariamente dissociada da outra. É aí também que é possível encontrar o perverso processo de branquemento do carnaval, que tem se afastado das matrizes fundamentais, em que se prega que os barracões de samba nada têm a ver com os de candomblé", elabora o sociólogo.

Limite entre homenagem e desrespeito

"Não tem como o povo preto vir para a rua e falar sobre gregos, porque a realidade social, histórica e religiosa dessa população está conectada com as religiões de matriz africana. Então, quando as divindades são colocadas nessa perspectiva, elas não são desrespeitadas, elas são honradas", opina Tadeu Matheus.

A jornalista Cláudia Alexandre, no entanto, salienta que mesmo com a similaridade de raízes, há um limite entre o que é sagrado e o que é profano, mesmo dentro de uma homenagem aos orixás feita durante um desfile de carnaval.

"Mesmo no candomblé, a gente tem uma parte que é restrita aos seguidores iniciados, que nem todos participam de todos os rituais, e temos a festa pública, chamada de xirê, em que a gente demonstra e confraterniza com o público em geral o que é possível mostrar da relação do sagrado", explica.

Dentro dos terreiros, segundo ela, existe um limite do que é restrito - ou segredo - do que é público. E essa mesma visão é esperada dos carnavalescos e das escolas de samba, em especial, das agremiações que estão afastadas da origem ligada aos terreiros de candomblé.

"Imagens, objetos, rituais, que pertencem à ordem de respeito, do silêncio, e do segredo que estão dentro e movem o centro das relações das religiões de matriz africana precisam ser respeitados e preservados", completa a especialista.

O pai de santo Carlos ressalta que o que é segredo para o candomblé é um dos aspectos mais respeitados pelos adeptos da religião. "Então, enquanto o carnaval mantiver o que é de público em público e o que é de mistério, mistério, a homenagem será feita sem ferir nenhum de nossos preceitos", finaliza o babalorixá.

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Alma Preta
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