Carol Duarte: "Ser publicamente lésbica e a favor do aborto é resultado da luta de mulheres antes de mim"
Atriz falou para o Terra NÓS sobre os desafios de estrear seu primeiro monólogo e também o primeiro longa falado em outra língua
Carol Duarte ganhou o Brasil em 2017 ao viver o homem trans Ivan em "A Força do Querer", novela das nove da TV Globo. Foi sua estreia nas telenovelas. Dois anos depois, debutou em Cannes com o longa "A Vida Invisível", em que dividia o papel com Fernanda Montenegro. Agora, em 2023, ela se prepara para mais duas estreias: um monólogo e um longa falado em outra língua.
"A Visita", peça que estreia nesta sexta-feira, 24, em São Paulo, é baseada em um conto escrito por sua ex-companheira, Aline Klein, com quem viveu junto por 10 anos, e traz a história de uma mulher confinada mergulhada no conservadorismo e extremismo.
"Esse solo é algo que desejo muito e há muito tempo, algo que pude fazer com mais autonomia. O conto foi escrito na pandemia, quando eu e Aline morávamos no Copan (edifício no centro de São Paulo) e o Murillo Basso, o diretor da peça, era nosso vizinho".
"Foi um encontro de ideias, e a gente se apaixonou por essa mulher que está há muito tempo trancada recebendo aquele mundo de informações lixo. Essa representação de uma elite branca que não tem mais o poder que tinha, a histeria coletiva que inclusive culminou no 8 de janeiro", conta ela sobre o espetáculo, referindo-se aos atos golpistas em Brasília.
Carol estudou na Universidade de São Paulo (USP), onde cursou Artes Dramáticas e Aline Geografia. A ex-companheira, que trilhou um caminho mais teórico como editora, tradutora e professora, editou a revista "Jacobin Brasil" que fala sobre política, economia e cultura sob uma perspectiva socialista. "De certa forma, essa peça é a coroação da nossa parceria, é um espetáculo pesado protagonizado por uma figura risível, que representa o absurdo que a gente chegou", explica.
A peça chega também junto do longa "La Chimera", escrito e dirigido por Alice Rohrwacher e selecionado para concorrer à Palma de Ouro no 76º Festival de Cinema de Cannes. Por aqui, deve estrear no começo do próximo ano, mas já passou por telas paulista na recém-terminada Mostra de Cinema de São Paulo.
Falado em italiano, língua que Carol já sabia, mas não dominava plenamente, o longa trouxe o desafio de interpretar em outro idioma. "É muito difícil nomear a vida com outras palavras e a língua tinha que estar muito em mim, para quando eu estivesse em cena, ela viesse do mesmo lugar", lembra.
Em "La Chimera", ela divide a cena com uma atriz do porte de Fernanda Montenegro, a italiana Isabella Rossellini e também o ator inglês Josh O'Connor, da série "The Crown". O teste para participar do filme foi uma indicação da diretora de fotografia Hélène Louvart, com quem Carol trabalhou em "A Vida Invisível", que ainda rende assunto.
Na parede do escritório de Carol, visível na videochamada em que a entrevista aconteceu, um poster de "A Vida Invisível" se destaca. "Foi um filme cheio de escolha para tensionar o patriarcado. É um filme duro onde não existe uma redenção no final e é um pouco o reflexo da realidade. Na década de 1950, da minha avó, a redenção não é tão real. Até hoje, na verdade, as mulheres estão encarceradas em destinos que elas não escolheram", dispara.
E é falando do longa e de "A Visita" que Carol evidencia suas lutas. "Temos nossos corpos dispostos a mercê de decisões que não são nossas. Eu sou publicamente a favor do aborto, tem que virar lei, é direito e saúde da mulher. Isso precisa ser legal".
"Ser uma atriz publicamente lésbica e a favor do aborto é resultado da luta de todas as mulheres antes de mim, de uma luta feminista", aponta citando ainda a luta por segurança menstrual com a distribuição de absorventes ou então o acesso à alimentação, lembrando que uma das lutas de sua personagem na série "Segunda Chamada" era por leite para o filho recém-nascido, tendo em vista que não conseguia produzir ela mesma por estar desnutrida.
Transfake
Não poderia, no entanto, ficar de fora um questionamento sobre o transfake na novela "A Força do Querer", nome dado à prática de atores e atrizes cisgêneros interpretarem personagens trans. Na mesma trama, o ator Silvero Pereira que é um homem cisgênero, também interpretou uma pessoa trans e já falou publicamente que não repetiria o pepel.
"Essa pergunta sempre volta, mas acho ela meio anacrônica. A escalação foi feita em 2016 e cabia à autora, Glória Perez, e ao diretor, Rogério Gomes, responderem, mas a discussão estava em outro patamar. Foram sete anos em que vivemos coisas gravíssimas no país, mas chegamos em uma eleição onde temos Erika Hilton e outras tantas pessoas trans em espaço de poder, com projetos não LGBTQIA+, mas com projetos de país mesmo", completa.
"De toda forma, o personagem que teve uma repercussão gigante, uma trama dramática com curvas, foi muito positivo. Hoje, não dá para levar uma produção de elenco sem os debates de transfake ou mesmo blackface, com escalação de pessoas sulistas para interpretar nortistas. Tudo isso diz sobre o tipo de arte que a gente quer fazer. É uma discussão mais complexa que tem que existir".
E é essa arte reflexiva que Carol apresenta nos próximos trabalhos, que contam com além de "A Visita" e "La Chimera", com o filme "Malu", primeiro longa dirigido por Pedro Freire, que tem a atriz dividindo novamente a cena com gigantes, as atrizes Yara de Novaes e Juliana Carneiro da Cunha.
Erramos: Aline Klein não cursou Artes Dramática como constava na publicação original e sim Geografia. O texto foi corrigido as 14h22 .