Chef Kátia Barbosa combate o etarismo e inspira mulheres periféricas na gastronomia
Referência na culinária nordestina, jurada do reality Mestre do Sabor fala sobre início tardio na carreira, e de sua luta por protagonismo
Ao se ver desempregada aos 40 anos e com duas filhas para criar, Katia Barbosa encontrou em um botequim na periferia do Rio de Janeiro a oportunidade de uma nova profissão e sustento. À época, não fazia ideia do quanto sua vida mudaria, mas foi ali que deu os primeiros passos para se tornar referência na gastronomia nordestina. É dela a criação do tradicional bolinho de feijoada, além de outras criações de comida afetiva que dão protagonismo a cultura sertaneja.
Uma das principais defensoras de mais mulheres negras e periféricas ocupando espaços de protagonismo na cozinha, a jurada do reality Mestre do Sabor, exibido pela TV Globo, tem usado sua própria visibilidade e a de seus restaurantes como ferramentas de transformação.
A frente do Aconchego Carioca e Kalango, ambos na capital fluminense, Katita, como é conhecida pelos mais chegados, agora faz parte do Juntas Na Mesa, movimento cocriado pela marca Stella Artois para inspirar e dar apoio às novas gerações de mulheres empreendedoras na cozinha. A capacitação e visibilidade são suas principais bandeiras.
Ao lado de outras renomadas chefs que trazem a representatividade de raça, idade e outros recortes, ela tem a oportunidade de contar a sua história, e também, através de um menu especial, apresentar suas conquistas e desafios a mais pessoas.
Em entrevista exclusiva ao Terra, Katita falou sobre o começo da carreira na maturidade, da sorte de ter encontrado o chef francês Claude Troisgos, quem lhe abriu caminhos, e a inspiração de sua filha, a chef Bianca Barbosa, que já desponta como uma das principais promessas da gastronomia brasileira.
Início de carreira
Comecei aos 40 anos. Imagine, uma preta, favelada, sem formação acadêmica e com duas filhas para criar. Foi muito complicado. Acabei trabalhando em um botequim. Entendi que aquela seria a minha última oportunidade de fazer diferente. E dali levava também meu sustento, literalmente. A comida que sobrava de lá, eu levava para casa para não ter que gastar com mercado. Foi uma entrega profissional tão maior do que quando era jovem porque enxerguei ali minha última saída, a única. Não conto essa história em público porque me emociono, mas pelo que vivi, hoje preciso incentivar que as mulheres jovens não saiam da escola devido a necessidade de ajudar no sustento da casa. Infelizmente, eu não tive escolha. No Rio de Janeiro, morando na favela, tentando economizar a passagem do ônibus, tudo fica bem mais complicado. É diferente quando você escolhe fazer um curso, se especializar e trabalhar com gastronomia.
Aprendizado na prática
A minha família é de cozinheiros. Tenho dois irmãos formados em hotelaria porque naquele tempo não existia escola de gastronomia. Eu não pude entrar no mesmo curso porque eu era mulher. É muito louco! Isso há mais de 40 anos. Todo o meu aprendizado vem da experiência que tive em casa com a minha mãe, com as viagens que fiz muito tempo depois, com meu irmão cozinhando em casa. Meu aprendizado foi muito de tentativa, erro e observação. A formação é crucial para o sucesso de mais mulheres na gastronomia. Comigo, trabalhei feito uma condenada. Mas tive também o fator sorte, e isso precisa ser dito. Não é só trabalho. O brasileiro tem o péssimo hábito de dizer que não é sorte, é trabalho. Isso não existe! Eu trabalhei muito, mas tive a sorte de conhecer o chef Claude Troigos e outras pessoas que gostaram da minha comida. O Claude foi lá no restaurante: isso é sorte. Ele gostou da comida: isso é meu trabalho.
Sorte e oportunidade
Eu tive muita sorte, mas é preciso cavar esses espaços. Usar redes sociais, investir numa assessoria de imprensa, fazer um curso, aprender a fazer marketing. Buscar visibilidade. Hoje tenho um projeto com um sócio que é professor de marketing. Visamos criar uma agência para atender mulheres micro empreendedoras. O mundo está mudando, e a sorte que tive em conhecer o Claude Troigos lá atrás, hoje, talvez, não seja suficiente. Preciso manter o trabalho visível. O mundo vai mudando, e nós mulheres, precisamos ir correndo atrás.
Inspiração em qualquer idade
Isso é muito louco porque nunca me percebi neste lugar de ser referência. Estou muito orgulhosa de poder inspirar outras mulheres a terem coragem de empreender, mostrar seu trabalho, de estudar mais, se dedicar e lutar, independentemente da idade. A gente luta desde o dia que sai da barriga da mãe. Meu marido brinca comigo que eu já caio correndo. A gente não percebe a nossa luta cotidiana. A ficha caiu há 3 anos, com a estreia do “Mestre do Sabor”. Televisão é muito legal porque aumenta a visibilidade. Chegam as críticas, mas também gente incrível que te diz: ‘muito obrigada. Eu tenho 40 anos e me senti inspirada a recomeçar’. Isso é muito bonito.
Falta de oportunidade e educação
Estudei só até a oitava série. Eu precisava trabalhar desde os 14 anos para ajudar minha família. Minha mãe tinha nove filhos, lavava roupa para fora e morava em um barraco. Não dava para pensar em sair de casa às 5h30, levar duas horas para chegar no trabalho, e depois sair, viajar mais duas horas, e ir para o colégio para repetir tudo de novo. É algo muito difícil. Mas quando você é jovem, você tem a ilusão que vai dar tempo, que você vai conseguir. Depois que você amadurece, casa, tem filhos, começa a achar que não dá mais tempo para mudar de vida. Mas sempre dá.
Cozinha como escolha
A minha filha me dá muito orgulho porque ela teve outras possibilidades na vida. A gastronomia foi escolha. Eu não tive referência, eu fui para a cozinha pela mais absoluta necessidade. Minha filha foi inspirada a seguir esse caminho. Ela quer mudar o mundo. Ela estudou. Fez jornalismo e ciências políticas, e escolheu a gastronomia como ferramenta de transformação. Imagina esse mulherão chegando com essa carga de cultura e informação? É outro papo. Minha jornada é igualmente transformadora. Mas acho muito bonito poder escolher ser cozinheira ou o que quer que seja. O que inspira mulheres, são outras mulheres. Minha filha é uma mulher valente e muito inspiradora.
Um fruto não cai longe do pé, né Kátia?
Graças à Deus!