Como a mídia ajudou a estigmatizar o HIV e a população LGBTQIA+
Ao longo das décadas, foram passadas informações incorretas sobre o vírus
Mais de um milhão de pessoas vivem com o HIV no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Entre 2011 e 2021, o número de diagnósticos aumentou 198%, informa o Boletim Epidemiológico de HIV/Aids, publicado semestralmente. Não há, no entanto, análises se o aumento se deu porque aumentaram os casos ou se isso ocorreu devido a disseminação de campanhas e programas de testagem ao longo das décadas.
Porém, com quase 50 anos de vírus, já é possível afirmar que a mídia teve um papel significativo na visão estigmatizada das pessoas vivendo com HIV e Aids no Brasil e no mundo, em especial nas primeiras décadas da epidemia.
"Falar, estudar e tentar entender a AIDS era uma realidade nova para a década de 1980. Muitos não sabiam lidar, a desinformação era comum, ainda não se conseguia mapear de maneira clara a doença. Esse momento coincide com as datas com o aumento da visibilidade homossexual (...) logo a mídia associou a doença à homossexualidade", afirmam Fábio Ronaldo Silva e Raquel da Silva Guedes no artigo "A mídia impressa e a construção narrativa sobre a AIDS no Brasil no final do século XX: Uma relação perigosa".
O doutor pela Universidade Federal de Pernambuco e a mestra pela Universidade Federal de Campina Grande, respectivamente, fazem, ao longo de vinte páginas, uma análise bastante significativa da questão.
Fábio e Raquel relatam que se tratou de uma questão mundial e apresentam a matéria "Aids a primeira doença da mídia", publicada pelo jornal francês Le Figaro, em 30 de outubro de 1985, que abordava a "grande difusão de notícias pela mídia sobre o assunto e chamava a atenção do público para um novo fenômeno social: a Aids-notícia, pois os veículos de comunicação seriam responsáveis pela construção e circulação das notícias referentes a essa doença, um fenômeno biomédico cuja rede de sentidos não se limitou apenas aos consultórios médicos ou hospitais, pelo contrário, a Aids tornou-se um produto midiático".
"No Brasil na década de 80, que marca o início do processo de redemocratização do país, a mídia tem um papel fundamental. Naquele momento, a AIDS, então denominada na mídia por nomes como 'doença dos homossexuais' e 'câncer gay', era a perfeita notícia para a abertura política do país: remetia à década de 70 no que havia de mais 'escandaloso' - sexo e drogas -, sem fazer menção ao contexto político",afirma em texto Jane Galvão, no livro "Aids no Brasil".
"Nesta leitura da AIDS feita por boa parte da mídia brasileira, um dos principais legados da década de 70 tinha sido um vírus, transmitido por um determinado comportamento, sobretudo sexual. Eram comuns matérias que mencionavam o 'desbunde' dos anos 70, a liberalização dos costumes, e como a AIDS foi um “banho de água fria” nas teorias libertárias dos anos 70", completa Jane.
Um dos maiores destaques, que permeou o imaginário popular por décadas foi a capa da revista "Veja" com o cantor Cazuza, bastante debilitado, junto do texto: "Uma vítima da Aids agoniza em praça pública".
Se naquele contexto a falta de informação e o viés negativo sobre a doença foi o problema, nas últimas décadas são a falta de profundidade e a linguagem os maiores obstáculos da mídia na informação sobre HIV/Aids.
Dados do Ministério da Saúde apontam que o maior número de novos casos se dá entre jovens de 14 a 29 anos, o que fez com que o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais (DDAHV) do Ministério, junto da Organização das Nações Unidas para Educação, a Cultura e a Ciência (UNESCO), lançasse, em 2015, o relatório “A mídia brasileira enfocando os jovens como atores centrais na prevenção de DST/AIDS e Hepatites Virais”.
“Os meios de comunicação precisam buscar uma linguagem capaz de alcançar diretamente a juventude, que seja menos impositiva e mais acessível. Só o “use camisinha” não tem funcionado. Além disso, hoje os jovens acessam as informações pela internet, por blogs que muitas vezes trazem conteúdos pouco qualificados”, afirmou na época do lançamento do relatório, Mariana Braga, Oficial de Programa do setor de Educação Preventiva da UNESCO no Brasil.
O entretenimento tampouco tem auxiliado na construção de narrativas e informação. As telenovelas, produtos de muita visibilidade, por exemplo, pouco abordaram o tema ao longo das décadas - e quando o fazem, em sua maioria, atrelam as tramas a mulheres, como Erica (Samara Felippo), na temporada de 1999 de "Malhação", Gina (Carla Diaz), em "Sete Pecados", de 2007, ou então Joy (Yara Charry), em "Todas as Flores", exibida este ano.
A representação feminina contraria uma realidade do Boletim Epidemiológico de HIV/Aids que apontou 25 casos em homens para cada 10 em mulheres em 2021.
Cabe reforçar que o HIV é uma sigla para vírus da imunodeficiência humana, que hoje ainda não tem cura, mas existe tratamento que evita que a pessoa desenvolva a síndrome da imunodeficiência adquirida, chamada AIDS.
Denominado comumente de terapia antirretroviral, conhecido também pela sigla TARV, o tratamento feito corretamente, faz inclusive com que pessoas com o vírus deixem de transmitir o vírus.
A UNAIDS, programa conjunto das Nações Unidas que tem como objetivo liderar e coordenar a resposta global à epidemia de HIV/AIDS, destaca ainda que "ninguém morre 'de AIDS', mas por doenças oportunistas causadas pela falha no sistema imunológico quando não é realizado o tratamento correto".