Como aborto passou de prática comum a estigmatizada e proibida ao longo da história
Interrupção voluntária da gravidez sempre existiu, por meio de várias práticas. Mas aborteiras são personagens que aparecem raramente nos estudos porque é muito difícil encontrar registros para fazer recorte historiográfico, apontam especialistas.
Engana-se quem pensa que o direito ao aborto é algo novo. Na realidade, a prática era comum na Antiguidade — e foi uma mistura de avanço científico com domínio religioso cristão em sociedades de patriarcado consolidado que fez com que, com o passar dos séculos, a interrupção voluntária da gravidez passasse a ser estigmatizada e, muitas vezes, proibida.
"Essa história longa da questão do aborto é bastante complexa porque envolve questões societárias, culturais e religiosas, mas também o grau de conhecimento científico em relação a como se dá o processamento de um novo ser humano no corpo", explica a socióloga Maria José Rosado, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da organização Católicas pelo Direito de Decidir.
"A questão do aborto sempre existiu, por meio de várias práticas. Mas as aborteiras são personagens que aparecem raramente nos estudos porque é muito difícil encontrar registros para fazer um recorte historiográfico", diz a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Rosin ressalta que há relatos de mulheres "que praticavam abortos tanto para prostitutas como para outras mulheres que engravidavam fora do casamento". "Há todo um componente religioso e moral colocado ali, mais do que tudo a legislação do aborto está sempre colocada como forma a interferir no corpo da mulher", frisa ela.
Tanto na Grécia como na Roma da Antiguidade, o aborto era visto como algo comum. A oposição à prática, quando havia, não se dava em defesa do embrião ou do feto, mas nos casos em que o pai argumentava que não queria ser privado do direito de um filho que julgava já ser seu. Vale ressaltar que eram sociedades em que a mulher era considerada propriedade de seu marido.
A possibilidade do aborto foi considerada inclusive por teóricos da época. O grego Aristóteles (384 a.C - 322 a.C) escreveu que "quando os casais têm filhos em excesso, faça-se o aborto antes que o sentido e a vida comecem". No seu entendimento, esse marco inicial da vida ocorreria de forma distinta no caso de meninos — a partir do quadragésimo dia da concepção — e de meninas — a partir do octogésimo dia.
Religião
Na Bíblia, também há indicações de que o aborto era praticado nas sociedades antigas do Oriente Médio. Há uma menção no Livro do Êxodo e, principalmente, uma passagem no Livro dos Números. Nesta, está a instrução do que fazer "quando a mulher de alguém se desviar, e transgredir contra ele".
"De maneira que algum homem se tenha deitado com ela, e for oculto aos olhos de seu marido, e ela o tiver ocultado, havendo-se ela contaminado, e contra ela não houver testemunha, e no feito não for apanhada", enfatiza a passagem.
O texto orienta a apresentar essa mulher a um sacerdote e detalha um ritual com "água santa". Muitos interpretam essa passagem como o entendimento de uma prática abortiva.
Curioso é que, no princípio do cristianismo, a nova religião se apresentava como um porto seguro para mulheres que não queriam abortar, mesmo que estivessem gerando filhos de relacionamentos considerados ilícitos — em uma Roma onde a prática era disseminada.
"A questão religiosa foi sendo construída ao longo do tempo. O mundo antigo era um mundo onde o aborto e o infanticídio eram práticas muito comuns. Isso aparece nos filósofos gregos e no mundo romano", pontua o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "O cristianismo se apresenta como uma tentativa de acolher mulheres que não queriam abortar."
"Na medida em que o cristianismo se aproxima e, depois, se apropria do Estado, a gente percebe que a visão cristã que antes era marginal passa a fazer prevalecer a visão contrária ao aborto", conclui Moraes.
A camada teórica dessa discussão sempre foi a ideia de início da vida — ou, de forma religiosa, em que momento a alma seria colocada no novo ser. Para o mundo ocidental, na maior parte do tempo o consenso foi que isso ocorria em algum momento entre a semana 18 e a semana 20 da gravidez, justamente quando passa a ser possível perceber movimentações do feto no ventre materno.
"Sobre a questão histórica, em que sociedade o aborto era aceito ou não, e como mudou, na verdade a história implica não só a cultura de sociedades tradicionais e antigas mas também o conhecimento, o que se sabia em épocas antigas a respeito do que seria uma gravidez", pontua a socióloga Rosado.
Ela ressalta, por exemplo, que entre os indígenas pré-colombianos "não havia nenhuma restrição ao abortamento", e que a prática era "uma questão resolvida entre mulheres e, mais tarde, por parteiras que cuidavam, realizavam os abortos, muitos por meio de ervas, naturalmente, a partir de conhecimentos ancestrais".
"O que aconteceu no Ocidente foi que a influência judaico-cristã se tornou muito forte, ao mesmo tempo em que se desenvolveu o domínio dos homens na sociedade, o patriarcado. Para nós, mulheres, a possibilidade de controlar aquilo que queremos ou não fazer com nossos corpos é fundamental", acrescenta a socióloga.
Novo Mundo
Na América colonial, por exemplo, práticas de abortamento foram incorporadas mesmo por famílias de colonizadores. Em geral, contudo, era um tabu, mantido em segredo — seja por razões religiosas, seja pela moralidade, pois o procedimento costumava ser utilizado para interromper gravidezes oriundas de adultérios.
No século 19, contudo, começaram a surgir leis específicas contra o aborto nos Estados Unidos. Em 1900, ali só era aceita a prática em casos de notório risco de vida para a mãe.
Essas legislações ecoavam as discussões que vinham da Inglaterra, onde desde 1803 o aborto podia ser punido até mesmo com a pena de morte. Lá, o aborto em caso de risco de vida para a gestante só foi autorizado por lei a partir dos anos 1920.
E se na Antiguidade mulheres procuraram refúgio no cristianismo para condenarem o aborto, na América do século 19, o incipiente feminismo foi a salvaguarda argumentativa para quem se posicionava contra a prática.
A precursora da luta feminista Susan Brownell Anthony (1820-1906) considerava o aborto como "assassinato de crianças". A também ativista Alice Stokes Paul (1885-1977) classificou o aborto como "a exploração final das mulheres".
O pano de fundo para essas visões é o mesmo que hoje condena o aborto, afinal: o prisma machismo da sociedade. Afinal, se o aborto era utilizado como uma tentativa de acobertar um adultério, como se a tal honra fosse maior do que o direito da mulher de ter aquele filho, as feministas precisavam lutar contra essa imposição. Hoje, se a criminalização do aborto impede que as mulheres exerçam o controle sobre seus corpos e tenham direito à escolha, as feministas entendem a necessidade de lutar pela liberação.
"Em vários casos, não só no cristianismo, a principal causa para se criminalizar a prática não é a vida em questão, mas, na verdade, o poder dos homens", analisa a socióloga Rosado. "Porque aquilo que se desenvolvia no corpo feminino era considerado de alguma maneira propriedade dos homens. E, portanto, a mulher não poderia dispor desse ser que se desenvolvia sem o que o homem permitisse."
Onda conservadora
"O controle do corpo da mulher está sempre colocado em pauta, está sempre pressuposto. E o [direito ao] aborto é fundamental porque temos de ter o direito de decidir sobre nosso corpo", afirma a historiadora Rosin. "Uma mulher não é um hospedeiro, não é uma chocadeira."
"Em última instância, [praticar ou não o aborto] essa é uma decisão da mulher, não deveria, um tema tão espinhoso e tão delicado, um tema como este não deveria ser politizado nesse nível", diz Moraes.
O historiador demonstra preocupação porque "a onda conservadora que vemos nos Estados Unidos" tem "reflexos aqui, porque o Brasil é uma cópia malfeita do que acontece lá, uma espécie de puxadinho".
"É um tema que inicialmente quem assumia uma posição muito clara era a Igreja Católica, mas que os evangélicos acabaram copiando esse modelo também. Determinados grupos encontraram no assunto um tema catalisador, que aglutina, faz com que vire uma bandeira. São grupos mais conservadores, mais radicais, fundamentalistas", explica Moraes.
"É um aspecto de manifestação de uma onda conservadora muita forte e os grupos conservadores no Brasil copiam esses exemplos norte-americanos tentando cooptar pessoas para essa causa, demonizando quem é contrário", complementa ele. "E essas mesmas pessoas que assumem uma posição 'a favor da vida', são pessoas que defendem a pena de morte. Há contradições nesse sentido."
Rosado acrescenta que "essa discussão sobre uma vida" a partir da concepção "é moderna, muito recente". "Ela se desenvolveu naquele setor mais conservador da sociedade, que passou a penalizar as mulheres, criminal e religiosamente, considerando o aborto um delito sujeito a pena ou um pecado sujeito a uma pena simbólica", diz a socióloga.
Para a antropóloga Debora Diniz, professora na Universidade de Brasília (UnB), "nunca foi uma questão sobre um processo evolutivo da sociedade", mas sim um indicativo de "maior ou menor fragilização democrática desde que começamos a tratar de direitos das mulheres e direitos humanos".
"Desde o momento em que temos Estado com suas próprias leis, [permitir ou não o aborto] é um sinal de estabilidade democrática e de proteção aos direitos fundamentais", defende a pesquisadora. "O que está ocorrendo nos Estados Unidos parece um contraprocesso histórico de direitos fundamentais, porque houve uma fragilização democrática no período do governo [Donald] Trump."
'Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61950222'