Conheça mãe e filha que são a voz do autismo feminino no Brasil
À frente do canal Mundo Autista, Selma e Sophia compartilham dores, alegrias e descobertas sobre o TEA sem deixar de lado a leveza e o humor
A filha reclama com a mãe por ser interrompida e perder o fio da meada do que estava contando. Dali a pouco a mãe faz o mesmo, mas não demora muito para acertarem. Em diversas perguntas que faço à filha, a admiração que sente pela mãe é quase palpável. O mesmo ocorre com a mãe.
Entre observar implicâncias mínimas, confissões e várias trocas de olhares carinhosos, a entrevista com as jornalistas mineiras Selma Sueli Silva e Sophia Mendonça foi uma experiência reveladora não só de um laço afetivo potente, mas do resultado de uma cumplicidade forjada com muita dor e luta. As duas são autistas, num mundo em que o Transtono do Espectro Autista (TEA) em mulheres ainda é permeado por dúvidas e discussões que envolvem questões de gênero.
Sophia é uma mulher trans, o que indica que sua trajetória teve e tem ainda mais percalços. "Na sociedade, o preconceito com os autistas é mais velado. Com as pessoas trans, o preconceito é bem mais explícito. Não costumo me colocar como ativista porque entendo que a minha existência por si só é um ato político", afirma.
Maternidade atípica e transgeneridade
Selma, 59, e Sophia, 26, moram em um apartamento em Belo Horizonte (MG) e são bem conhecidas no universos dos influenciadores autistas. A dupla está à frente do canal Mundo Autista, o mais antigo do YouTube no Brasil. Além dos vídeos publicados desde 2015, o Mundo Autista também conta com conteúdo no Instagram e podcast. Selma é jornalista, relações públicas e radialista experiente; Sophia é Mestra em Comunicação Social pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e trabalha como desenvolvedora de softwares. Sophia, inclusive, tornou-se a primeira mulher transgênero e autista a defender um mestrado no Brasil.
Elas somam diversos livros publicados a quatro mãos, como "Autismo no feminino - A voz da mulher autista" (Ed. Mundo Asperger). Selma relatou suas vivências com a decoberta do TEA e a maternidade atípica em "Minha vida de trás para frente" (Ed. Manduruvá). Sophia, atualmente, vem cuidando do relançamento de "Metamorfoses" (Páginas Editora), lançado em 2022, no qual aborda autismo e diversidade de gênero.
Embora tenha notado alguns sinais de autismo em Sophia desde que ela era pequena, como o fato de bater a cabeça na parede, o hiperfoco e a inteligência, Selma só recebeu o diagnóstico de TEA da filha quando ela tinha 11 anos. Os anos de adolescência de Sophia, relata, foram bem difíceis para as duas, mas um processo que mais tarde se mostrou fortalecedor. "Eu escutava mães de pessoas neurodivergentes se referindo aos filhos como 'anjos' e não entendia aquilo direito, não me via mãe de um anjo", conta. "É que eu tinha mais jeito de demônio", brinca a jovem.
A maternidade solo não se aplica ao caso de Sueli - e Sophia concorda. Porém, o casamento com um jornalista se desfez em 2008. Com um quadro de depressão severa, o marido não aceitou o diagnóstico da filha na época e Sueli acabou arcando com tudo o que ter uma criança com TEA envolve: agenda e custos de tratamentos, adaptações de rotinas e aspectos emocionais.
Já no Ensino Médio, as duas optaram por não revelar na escola a condição de Sophia. "Eu tinha uma aparência andrógina e já chamava a atenção por conta disso. Então, meu quadro era conhecido por fobia social. Se me revelasse autista, acredito que sofreria ainda mais", conta Sophia, que explica que pequenininha já se entendia como mulher. "Minha mãe sempre soube disso e me acolheu, me compreendeu e me ajudou", lembra. "Na minha visão, o fato de uma família jogar pedras num filho ou filha trans acaba legitimando que toda a sociedade faça o mesmo. Tento orientar sobre isso nas palestras que faço", reforça Selma.
Cura gay e etarismo
A Via Crucis enfrentada antes de transicionar e se submeter à cirurgia de redesignação sexual (aos 23) deixou na memória de mãe e filha alguns episódios traumáticos, como a espécie de cura gay que um psiquiatra tentou induzir em Sophia. "Ele mal compreendia a diferença entre pessoas intersexo e trans e dizia que quando eu 'me apaixonasse, minha sexualidade seria outra'. Ou seja, não tinha nem noção de identidade de gênero e orientação sexual. Alguns especialistas ainda me orientavam para eu não ser tão andrógina como era, e sim mais 'masculina' para evitar bullying e assédio. Foi uma tortura."
Enquanto lidava com suas questões e buscava uma forma de mostrar quem verdadeiramente era, tanto em relação à identidade quanto ao TEA, Sophia passou a desconfiar de que a mãe também fizesse parte do espectro. "O autista sempre gera um incômodo nos outros por seu modo diferente de funcionar e eu sei que causava uma certa importunação por conta, principalmente, da minha rigidez de pensamento. Eu sempre fiz questão de receber os centavos de um troco, por exemplo, vivia brigando no sacolão ou na padaria por causa disso. Também sou dotada da hipersensibilidade, também chamada de empatia excessiva, comum a alguns autistas e me comunico e interpreto as coisas de forma literal. O hiperfoco e algumas ações que interpretava até então como falta de paciência também eram sinais. Com o apoio de Sophia e muita pesquisa, decidi checar", recorda Selma.
Com 53 anos na época, foi vítima de duplo preconceito: por ser mulher e por ser 50+. "Acredita que ouvi que estava velha demais para 'mexer com isso'? Fui em busca de ajuda e recebi de volta etarismo", diz. Felizmente, não demorou muito para encontrar o profissional certo que pudesse lhe proporcionar o apoio adequado. Para mãe e filha, mesmo com tantas dificuldades, o diagnóstico de Selma foi um divisor de águas. "Pude fazer um resgate da minha mãe. Foi maravilhoso", celebra Sophia.
Sempre juntas
O entendimento individual e mútuo as conduziu ao protagonismo das próprias vidas e condições, levando-as ao desejo de compartilhar de maneira leve, bem humorada e respeitosa - como fazem questão de frisar - suas descobertas e experiências. Para concluir a entrevista, pergunto às duas sobre seus projetos futuros individuais e em dupla. Embora tenham, sim, vidas autônomas, a resposta de uma inclui a outra - e vice-versa. Sophia avisa, por exemplo, que quer comemorar os 60 anos da mãe, que aniversaria em setembro, com novos projetos. "Quero que esse novo ciclo de vida dela seja marcante", ressalta, antecipando também que pretende escrever contos ficcionais de terror e fantasia sobre vivências de mãe e filha no autismo e um livro sobre relacionamentos amorosos no autismo.
Selma, por sua vez, cita uma ideia de reality show e o investimento na educação da sociedade em relação ao autismo, principalmente aliado à diversidade de gênero - o que já faz no podcast TransParente, voltado a familiares de pessoas trans. Tanto uma quanto a outra fazem questão de salientar que têm, sim, caminhos individuais, mas quem certos pontos dele não soltar a mão uma da outra é fundamental. "É bom demais tê-la na minha vida", derrete-se Sophia. "Com certeza, a trajetória com Sophia me faz melhor", endossa Selma.