Conheça o grupo de mulheres católicas que lutam pelo aborto legal e seguro: "Não há contradição"
Católicas pelo Direito de Decidir, ONG feminista fundada pela socióloga Maria José Rosado Nunes, existe há 30 anos no país
"Até Maria foi consultada para ser mãe de Deus". É com esse poderoso argumento que o grupo Católicas pelo Direito de Decidir vem atuando na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nos últimos 30 anos no Brasil.
Fundada no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, em 1993, e formalizada no ano seguinte, a organização não governamental se apoia na prática e teoria feministas para promover mudanças na sociedade, especialmente nos padrões culturais e religiosos.
“Para uma grande parte da população feminina no Brasil, o projeto de vida é muito orientado pela religião. É fundamental dizer para essas mulheres que elas podem se manter em sua fé religiosa e se definirem autonomamente sobre seu corpo, o que implica não só seus relacionamentos sexuais como também possibilidades da sua capacidade reprodutiva”, afirma a socióloga e fundadora da ONG feminista Maria José Rosado Nunes.
Missão
O Católicas Pelo Direito de Decidir tem uma missão bem desenhada. O grupo promove e defende os direitos das mulheres, especialmente aqueles relacionados à sexualidade e reprodução humana, a partir de uma perspectiva ética, católica e feminista.
“Não há uma contradição absoluta entre doutrina, tradição, interpretação bíblica e a afirmação da autonomia individual. O que existe é um discurso hegemônico, no caso da igreja católica, que diz que mulheres não podem ter o poder religioso e fazer parte do poder institucional por serem mulheres e que as pessoas que gestam não têm autonomia para decidir sobre essa gestação”, afirma.
Ela explica que o poder de decisão sobre o próprio corpo é soberano à vontade de uma religião. “Não há nada mais importante do que nossa corporeidade. O meu corpo é o que sou, portanto é a minha dignidade. Como alguém pode ter ingerência sobre o que sou?”, questiona Maria José, que, em 2005, foi indicada pela Associação Mil Mulheres pela Paz, em conjunto com outras 51 brasileiras, para receber coletivamente o prêmio Nobel da Paz.
E é por isso que uma das principais frentes de trabalho do grupo é a laicidade do Estado. "O Estado laico é aquele que respeita a pluralidade religiosa, que é democrático e não se subordina a nenhuma religião especificamente" afirma a ONG.
Valorização da maternidade
Para o Católicas pelo Direito de Decidir, quem engravida precisa necessariamente ter o direito de escolher o que acontecerá com o seu corpo, portanto com seu próprio ser.
“Consideramos que um processo que se dá no corpo de uma pessoa, só ela tem o direito de dizer se quer levar a termo ou não, nesse caso uma gestação”, ressalta a socióloga.
“Defender a legalização do aborto, ao contrário do que pensa o senso comum, não é ser contra a maternidade. É valorizar a maternidade, dignificar a maternidade porque retira da maternidade a pura realização biológica e anatômica, aquele pensamento de que se pode gerar, é obrigada a cuidar. A maternidade é um processo tão maravilhoso que deve ser uma escolha para que o resultado, que é o nascimento de uma criança, seja assumido na sua totalidade”, defende a socióloga e fundadora da ONG feminista.
Nota técnica barrada
Maria José não ignora o tamanho da luta, mas faz questão de esclarecer que os obstáculos para a autonomia feminina não surpreendem.
“Essas ameaças não são novas. É um poder muito grande você ter a possibilidade de se definir pela maternidade ou não. Só nós, mulheres, e as pessoas que gestam têm a possibilidade de oferecer à sociedade um novo ser. Sempre houve tentativas de cercear esse poder e de torná-lo limitante, no sentido de restringir a mulher apenas a gestar e a estar presente no lar. Isso sempre esteve no caminho das mulheres e com um investimento religioso muito forte nesse sentido”, afirma.
Apesar do poder religioso ser evidente, para a ONG Católicas pelo Direito de Decidir o problema, atualmente, vai além.
“Não acho que a igreja vá mudar por ela mesma, mas a sociedade pode obrigá-la a mudar de alguma maneira. No momento, o problema é muito mais a sociedade do que a religião”.
Ela lembra que o Brasil é um exemplo disso citando a suspensão recente de uma nota técnica do Ministério da Saúde que estabelecia não haver um limite temporal para a interrupção de uma gravidez nos casos já previstos na lei. O código penal não traz essa determinação temporal. A nota anulava uma imposição de um limite de 21 semanas e 6 dias de gestação para a realização do procedimento estabelecida pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.
“O caso da nota técnica do Ministério da Saúde mostra que o problema não é apenas a igreja. Esses ataques [à autonomia feminina] vêm da extrema direita, que é pautada por essas compreensões rígidas e retrógradas da religião”, afirma.
“É um absurdo que haja uma nota técnica que nem contempla a legalização amplificada ao aborto e ela seja suspensa. Ela apenas dá diretrizes para que leis que já existem sejam cumpridas. Ela defende a vida das mulheres. A ilegalidade mata as mulheres”, ressalta.
Atuação
Presente em diversas frentes, o trabalho do Católicas pelo Direito de Decidir se dá por meio do desenvolvimento de pesquisas, artigos, editoriais, publicações, peças publicitárias, criações gráficas, intervenções artísticas, materiais audiovisuais, campanhas e de comunicação digital sobre direitos humanos, em especial saúde sexual e reprodutiva. São delas publicações como "Teologias fora do Armário", "Entre Dogmas e Direitos: Religião e Sexualidade" e "Olhares Feministas sobre a Igreja Católica", todos disponíveis gratuitamente no site da organização.
O movimento destaca ainda a importância do reconhecimento das individualidades e interseccionalidade da luta. "Nossas atividades são direcionadas para as mulheres, jovens, LGBTs, negras, pois acreditamos ser essencial o fortalecimento destes grupos sociais, sejam eles organizados ou não, para que possamos construir uma sociedade plena de direitos e livre de preconceito e violência", destaca a ONG em seu site.
Financiada por fundações e organizações internacionais e nacionais e pessoas físicas, a Católicas Pelo Direito de Decidir tem grupos atuando também em outros países da América Latina, nos EUA e na Europa.